Conflitos e Sociedade
"Todas as sociedades possuem padrões
intrínsecos de conflito e modos culturalmente específicos de lidar com eles
[...] através de várias combinações de violência, submissão, negociação ou
fuga"[1]
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The Kirkburn Sword |
Não creio que a sociedade estudada aqui seja diferente. É
inegável, através dos diversos materiais arqueológicos de cunho belicoso
encontrados, estudados e catalogados, como as armas, as panóplias guerreiras,
os carros, as estatuetas com motivos guerreiros e as diversas fortificações
criadas, que estamos lidando com um grupo de indivíduos que tem em seu
horizonte, em grande medida, a guerra.[2]
Mais do que isso, acredito, assim como Armit e diversos
outros autores, que, para estas sociedades, a guerra, ou a sua ideia, fazia parte
constante de suas vidas, sem que uma pudesse descolar-se da outra e por isso,
talvez, sem que eles conseguissem imaginar um cenário onde ela não estivesse
presente. Sendo assim, é fácil supor que comunidades conflitantes buscassem uma
forma de viver suas vidas com uma segurança maior, já que fugir plenamente das
mais diversas formas de conflito parecia ser impossível.
Como Peter Wells afirma em seu trabalho[3],
talvez toda a energia despendida em preparação e representação militar tenha
resultado, ou tenha tido como expectativa de resultado, evitar o real conflito.
Isto pode ir ao encontro das teorias de pacificação dos Hillforts, coadunada
com as críticas à teoria defensiva/militar que se baseia, por exemplo, na falta
de grandes enterramentos e/ou vestígios de massacres ou guerras mais expressivos.
Contudo, e é aqui que começam as singularidades deste trabalho, creio que, esta
constante tentativa de pacificação, ou, antes mesmo, da manutenção da segurança
da comunidade, por iniciativa gradual, e talvez não completamente consciente,
da própria sociedade, pode ser o que dá espaço e ensejo para a formação de uma
elite social hegemônica, capaz de coordená-la para a efetivação deste desejo
comum e dos próprios desejos privados.
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Chertsey Shield |
Considerando que Hill tenha razão ao afirmar que as
evidências arqueológicas falham em comprovar plenamente as interpretações
profundamente hierarquizantes da sociedade celta britânica[4], e
afirmando que uma elite dominante ainda não exista de forma consolidada teriam
que ser justificados todos os enterramentos ricamente aparelhados nos mais
diversos sítios, tidos, pela maior parte dos autores, como provas da existência
de uma classe dominante.
Esta classe à qual me refiro seria representada por um
grupo mais abastado, formado principalmente de guerreiros e possuidor de um
poder capaz de controlar, julgar e punir, coordenar e explorar de diversas
formas os demais membros da comunidade, que passaria a ser ilustrada de forma
cada vez mais triangular, no que diz respeito ao distanciamento social, onde um
pequeno grupo deteria o poder de decisão e controle, e uma grande massa serviria
à manutenção da reprodução não só de si mesmos mas também de tal classe
economicamente menos participativa da produção.
Bem, para responder a esta questão trago algumas sugestões:
A primeira delas, se apoia no trabalho do próprio Hill, já que ele afirma, de
forma muito lúcida, que nem todas as sociedades na Inglaterra e na Irlanda
devem ter pertencido, simultaneamente e/ou da mesma forma, à sociedade praticamente
não hierárquica que ele propõe[5], e
tenham alcançado uma hierarquização mais ou menos anterior decorrente dos mais
diversos fatores. Sendo assim, não é destas sociedades que tratamos, pois elas
possuem um conjunto de realizações que as levou a isso, por questões diversas,
e que, portanto, as excluem deste modelo que proponho.
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The Battersea Shield |
Uma segunda resposta, que se insere em nossa proposição é
a de que tais deposições junto aos mortos, em seus enterramentos, assim como as
ritualísticas em lagos, rios e outros sítios, não necessariamente indiquem a
guerra propriamente dita, nem mesmo o distanciamento social caracterizador das
elites, como as definimos, mas uma valorização da figura guerreira que,
incluída naquela sociedade num sentimento de conjunto e paridade, mereceu ou
poderia ter merecido destaque por conta de ações tomadas em prol da comunidade,
como a defesa contra inimigos, ou a expansão do território, ou qualquer outra
ação ligada à esta figura e à manutenção da segurança e dos interesses do
grupo.
Deve ficar claro que não proponho aqui uma sociedade
pacífica, ou que evitou o conflito, pelo contrário, tento delinear uma
comunidade que vive tão plenamente o conflito que qualquer movimento que faça
contrário à ele ainda não é capaz de evitá-lo completamente, seja de forma
passiva ou ativa. Tanto é que, ademais de todas as iniciativas que foram
tomadas ao longo da idade do bronze final, que, provavelmente, acabaram por
elevar de certo modo a figura guerreira, a idade do ferro é marcada pela
construção de centenas de Hillforts, que, para além de muitas outras funções
práticas e rituais, possui a noção clara de defesa, seja da produção armazenada
dentro de suas trincheiras, seja da própria comunidade que se resguarda dentro
dele em momentos de perigo e ameaça.
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River Thames Spearhead |
Sigo o raciocínio de Hill no que diz respeito a hierarquização,
ou a falta dela: Ele diz que estas comunidades tendem a uma distância social
pequena - ele supões que eventualmente a disputa interna ou a instabilidade
econômica levassem a disparidades sociais, mas estas desigualdades seriam
efêmeras, pois raramente haveriam mecanismos que possibilitassem que uma
família mantivesse esses ganhos para seus descendentes ou parentes. Por mais
que os membros da comunidade disputassem por prestígio ou riquezas entre si, o
poder seguia sendo comunal.
"Estas eram sociedades com líderes (leaders),
não governadores (rulers), e provavelmente líderes no plural"[6]
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Horned helmet |
Ele prefere imaginar também que a atribuição e acesso aos
bens e recursos comunais fossem acordados entre diversos membros das famílias
componentes de uma comunidade, embora essas instituições pudessem ser mais ou
menos formalizadas de acordo com a comunidade em questão, podendo haver cargos
específicos, talvez, mas ainda assim estas responsabilidades seriam
conquistadas, merecidas e acordadas com, ao menos um conjunto, ou todos os
membros da comunidade, de alguma forma - mesmo que um membro de família
seguisse no cargo que seu antepassado conquistara. Desta forma, objetos
associados, carregados ou ostentados por um membro da comunidade eram, antes de
uma prova do valor pessoal, uma prova do valor comunal.
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Bronze boars from the Hounslow Hoard |
É claro então que os conflitos não eram apenas externos,
mas internos também, muitas vezes. Por isso é defendido por alguns autores,
incluindo o Hill, quase sempre baseados na etnografia, que, como resolução de muitos destes
problemas, a possibilidade de fissão dos grupos exista, quando uma parte quer
evitar a submissão a outra, ou qualquer outro tipo de disputa ou dependência no
seio da comunidade. [7]
Tendo isso em vista é fácil supor também que, para além
de uma hierarquização interna nas comunidades, uma hierarquização inter-comunal
tenha se desenvolvido, já que algumas comunidades melhor alocadas no espaço,
com acesso mais fácil a alguns recursos fundamentais, melhor defendidas, ou
melhor organizadas tenham conseguido uma autonomia ou uma proeminência militar
ou econômica, muitas vezes mais interessante para a reprodução dela e de seus
membros, que lhe permitia expandir sua área de influência por outras regiões inóspitas
ou já habitadas alcançando outras comunidades que acabavam por se integrar a
rede de interdependência destas.
[1] ARMIT, Ian. Hillforts
at War: From Maiden Castle to Taniwaha Pā. Pgs. 35-36 (Tradução do Autor)
[2]" Ação proposital
de grupo organizado, dirigido contra um outro grupo que pode ou não estar organizado para a mesma ação, que envolve a aplicação
real ou potencial de força letal"
Ferguson, R.B. Warfare, Culture and
Environment. 1984 (T.doA.) - Trecho retirado do texto do Ian Armit.
[3] WELLS, Peter S. The
Iron Age. Pg. 417
[4] HILL, J. D. How did British Middle and Late Pre-Roman
Iron Age Societies Work (if they did)?. Pg. 242
[5] Idem. Pg. 257-258
[6] HILL, J. D. How did British Middle and Late Pre-Roman
Iron Age Societies Work (if they did)?. Pg. 255-256
[7] Idem. Pg. 256
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