Sugestões, Pedidos e Dúvidas

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18 de janeiro de 2021

Rancor

 Esta é uma história sobre Rancor.


Ela aconteceu num pacato condado bem ao norte de Orull, lá entre os picos e montanhas de Val das Covas. Quem conta essa história nunca sabe bem por onde começar ou onde terminar. Pessoalmente, sempre gosto de começá-la com o pecador na nave da igreja. Na calada da noite. Quando até os cães já tinham ido dormir e o único som que perturbava a cidade era o ranger constante do moinho d’água, ecoando solitário, mais abaixo, no vale.

Contudo, no teto alto da igreja, ecoavam os murmúrios de perdão daquele homem, que justo naquela noite decidira confessar-se perante o Eterno. Mas havia um outro som. Era um som suave e reverberante, que lhe chegava aos ouvidos, quando parava para respirar. Contínuo, baixo e indistinguível. Preenchia o ar ao seu redor como se fizesse parte da própria atmosfera do templo. Uma voz, talvez. Não mais que um sussurro.

Ele terminou sua prece, de joelhos, e levantou-se, diante do altar. Tudo ecoava no silêncio. E o sussurro persistia. Assim, ele foi até uma das sombrias laterais da nave, e caminhou com a mão nas paredes, lenta e cuidadosamente. Tentando identificar qualquer sentido naquele murmúrio perturbador. Podiam ser os anjos conversando com o Eterno sobre o dia… Seu coração estava acelerado e as palmas de suas mãos suavam. Ele, mais do que ninguém, sabia a quantidade de pecados que podiam ser praticados em um só dia, mesmo num lugarejo como aquele.

Ele sempre achou a atmosfera daquela igreja fantasmagórica. De dia até havia um pouco de sol. Mas, à noite, a luz provinha apenas de algumas velas grossas sobre o altar, e de alguns nichos laterais, dedicados a santos e santas da região, que tinham sido acesas por camponeses desesperados pelo auxílio dos céus. Em cada movimento que fazia, era preciso e cauteloso. E foi no vão de uma das escadarias laterais que seu coração parou. Seus dedos tocaram ferro gélido, que seus olhos eram incapazes de enxergar, e o som ficou mais intenso. Parecia vir lá de cima. 

Havia uma grade fechando a passagem e um pesado cadeado trancado, garantindo que ela continuasse assim. O homem pensou em chamar o padre, que morava numa casinha, logo depois do pomar, onde vivia também uma governanta, que não lhe deixava faltar nada. “Se a porta está trancada”, pensou, “apenas os espíritos poderiam ter entrado lá.” Ele mordeu a pele dos ossinhos dos dedos, para controlar o nervosismo. Mas enquanto se decidia, o som continuava. Rítmico. Marcando as marteladas de seu coração. E, no corredor, escada acima, apenas escuridão.

- O que eu faço? - Pensava ele. - Não posso estar ficando maluco…

E não estava.

O som aumentou. E logo diminuiu.

Parou.

Ele não tinha reparado, mas nem respirava. Ao dar-se conta, deu também dois passos para trás, puxou o ar e pensou em correr dali. Mas ouviu um trinco de porta abrindo lá em cima.

- Espíritos não usam portas - murmurou, para se convencer. - O padre está em casa… eu vi a luz da lareira quando cheguei. - Virou-se de costas e caminhou decidido até a porta de entrada da igreja.

Mesmo convencido de que o padre estava em casa, iria confirmar. O chamaria se fosse necessário... A cada passo virava a cabeça para trás. Mas, no que encostou as mãos no puxador gelado da porta, ouviu passos na escada, o som inconfundível do risinho de uma jovem, um chiado que calou o riso, e então, mais passos. Os barulhos ecoaram pela nave da igreja até desaparecer. Então ouviu o som da corrente do cadeado, chave girando, porta rangendo...

Ele já tinha saltado de volta para a escuridão da ala lateral, e estava escondido na sombra de uma das tapeçarias que contava a história da Última Vinda do Eterno, quando, de repente um outro homem foi iluminado pela luz fraca das velas. Ele havia caminhado até o centro da nave, feito uma reverência em direção ao altar, como quem pede desculpas e então, deu um assovio baixo em direção à escada e outra pessoa saiu de lá. Uma mulher.

Afinal, pareciam haver pecadores mais esforçados do que ele.

Certificando-se de que estavam sozinhos, aquele homem fechou a porta, agora sem tanta cerimônia. A mulher se agarrou em seus braços, rindo com mais vontade, e disse:

- Ainda não consigo acreditar… uma pesquisa noturna, você disse. Nossas almas pecadoras irão pesar… mentindo para o padre e para o Eterno.

- Para o padre talvez, mas o Eterno tudo vê e tudo sabe, não há como enganá-lo.

E os dois, se ajoelharam na frente do altar, para se retratar.

- De nada serviria tentar enganá-lo...

O homem escondido tinha deixado as sombras e caminhado lentamente até eles. Ambos saltaram assustados, virando-se, quando ele falou. A jovem emitiu um gritinho, confusa, e posicionou-se atrás de seu companheiro, que arregalou os olhos quando reconheceu quem estava diante deles.

- He… He… Herus?! - Ele foi pego tão de surpresa, tão de repente, que sua exímia cara de pau ficou tão oleosa que refletia o terror de seu coração. E não conseguiu falar mais nada.

Herus, por sua vez, estava tão aliviado de que os sons que ouvira não eram dos anjos dizendo ao Eterno sobre os desvios de seu caminho, que chegou a esboçar um sorriso quando disse ao seu meio-irmão mais novo:

- Thevir, eu vou deixá-lo agora, pois não quero atrapalhar a sua noite com esta puta. Mas amanhã, bem cedinho, eu estarei tomando meu desjejum, e pensando no que eu quererei que você faça para mim, para que eu mantenha este escândalo silenciado - Naquele instante, ele saboreou cada palavra, como saborearia na manhã seguinte cada pedaço de uma torta qualquer, que uma ama qualquer lhe serviria à mesa. - E então, você virá a mim, como um cachorrinho, e implorará, para que meu plano de deixar este lugar se concretize e nunca mais eu tenha que olhar para a sua cara nojenta, que só me faz lembrar de nosso pai. E então você poderá manchar a sua honra e a de sua família, transando com quantas putas você bem entender em quantas porras de igreja você bem entender.

Thevir apenas tremeu, apertando a mão de Allena sobre seu braço, enquanto Herus se afastava, escancarava as portas da igreja, triunfante, e sumia na escuridão lá fora. Os olhos dos jovens amantes se encontraram. Desespero e angústia. A noite acabou ali.


Na manhã seguinte, Herus decidira ter seu desjejum nos jardins da herdade de seu falecido pai. O antigo senhor havia morrido com a peste, que não poupara ninguém. 

Comia um grande pedaço de “A’mhor de Nozes”, uma torta de origem albaraza. Seu doce favorito. Entre uma colherada e outra, viu Thevir se aproximando por um dos caminhos de pedra.

Herus era mais velho, com seus trinta e poucos invernos, filho primogênito do antigo lorde, mas sem qualquer direito, por ser bastardo, filho de uma camponesa. Ela morrera jovem e ele foi viver no castelo: escudeiro de qualquer um. Como adulto, era apenas mais um soldado, apenas mais um cortesão, apenas mais um peso para o irmão que herdara as posses do pai. Ele não tinha responsabilidades, nem liberdades, por isso abusava do fato de viver no castelo.

Já Thevir era um molecote, mal chegado à idade adulta, cerca de 16 primaveras, treinado para ser soldado, esperto e falastrão, quinto filho legítimo do falecido lorde, mas segundo varão, conquistava aos poucos seu lugar no mundo e a confiança do irmão mais velho - coisa que era difícil, visto que sempre estava envolvido em alguma confusão. Nenhuma como “transando na biblioteca da igreja, depois de ter roubado as chaves”.

Caminhava vacilante, sem prestar atenção no sol lindo que fazia, nas calêndulas desabrochadas, ou em qualquer outra coisa que não fosse o meio-irmão, sentado sob um toldo esvoaçante de seda cara, com um ar ensoberbado e insuportável. Eles nunca se deram muito bem, e Thevir desde pequeno aprendera a evitar Herus.

- Está um lindo dia irmão. Por que a carranca?

- Diga o que quer Herus. Vamos acabar logo com isso - respondeu o mais jovem, com todo o orgulho que conseguiu reunir. Fez um sinal para os servos deixarem-nos a sós.

- Não quer um pedaço de torta, um suco de limão? - Perguntou, já se inclinando com uma jarra na mão.

- Eu quero acabar logo com isso.

- Me alegro que esteja tão ansioso. Talvez até o fim da semana já tenhamos conseguido nos livrar um do outro, o que acha?

- Você sempre com essa conversa de que vai sair… E se sair, vai fazer o quê?

- Ah… que terno. Isto é um pedido para que eu fique, irmãozinho?

- Meio-irmão. - Havia uma mistura de nojo e ódio.

Herus revirou a língua dentro da boca, e respirou fundo. Talvez tenha deixado transparecer não mais que um lampejo do ódio nutrido por toda aquela vida e aquelas pessoas, que o mantinham à margem. Thevir com certeza não percebeu e insistiu:

- O que vai ser afinal? Dançar nu com uma cabra na praça? Cavalgar pelado no Inverno? Te pagar uma passagem para Orull? Uma noite em algum prostíbulo em Louvença? - Seu sangue subia pelo pescoço.

Herus abriu um sorriso amarelo, desfrutando cada instante. Levou calmamente mais um pedaço de torta à boca e saboreou-a, deixando sua doçura misturar-se à amarga angústia de Thevir. Eles se encaravam. Engoliu e falou em seguida:

- Eu quero - enumerou nos dedos - duzentos Soris. Duzentas moedas douradas reluzentes, com um sol de um lado e a carinha do nosso rei de outro.

- Deixe de absurdos e diga logo o que quer que eu faça… de que te vale implicar comigo por conta disso?

Herus recostou-se na cadeira e cruzou os dedos satisfeito, encarando Thevir, esperando ele digerir a verdade.

- Não é possível - protestou indignado - Ninguém é santo aqui. Nem meu pai pôde se conter… E você é a prova viva disso... Realmente acha que vão fazer todo este escândalo? Eu a amo! Casava-me com ela, se não fosse meu irmão.

Herus riu da ingenuidade do garoto. De fato, todos sabem que transar não é o problema, como se evitaria? No entanto…

- Você foi longe demais Thevir levando uma qualquer para a igreja, garoto… não tinha nenhum celeiro para vocês se meterem? Estava em busca de emoção? Queria trepar à vista do Eterno? Onde é que você enfiou a sua cabeça, seu imbecil? Para qualquer um daqueles monges linha dura, é fogueira para você e para a sua garota 

Thevir começou a dimensionar a tolice. Herus aproveitou a deixa e imitou uma fala inflamada:

- Pecadores infames! Adoradores do Impuro! Fornicadores detestáveis! Vergonha para a humanidade! - Ele falava no falsete, apontando o dedo para a cara do meio-irmão, se divertindo com isso.

Thevir pôde quase sentir as chamas da fogueira ao seu redor. Há uns anos atrás, quando seu pai ainda estava vivo, ele tinha visto uma mulher, acusada de bruxaria, queimando na fogueira. Lembrou-se do monge itinerante que a condenara, falando num tom muito semelhante. Talvez Herus também se lembrasse dele.

- Você não vai me assustar com essas bobagens. - Disse. Tentando parecer firme. Como Herus não falou nada, adicionou - Onde eu vou conseguir todo esse dinheiro?

- Ora garoto… Você é esperto… E rico. Tenho certeza que pensará em alguma coisa.

Thevir ainda ficou sentado alguns instantes tentando digerir se aquilo tudo era verdade. E os olhos astutos de Herus deixavam claro que ele não estava brincando. Thevir sentiu um medo que nunca havia sentido antes. Naquele dia ele se deu conta de que, às vezes, o inimigo dividia o teto com você e se misturava com a multidão, sem deixar rastros, para um dia aparecer, dar o bote e sugar toda a sua felicidade. Mas ele tinha um plano. Um anel de ouro aqui, um pagamento falso ali… Inclusive, o recolhimento de impostos seria esta semana, e ele poderia “supervisioná-lo”... De fato, para as terras deles esta quantia não era tão volumosa, embora também não fosse nada irrisória. Ela equivalia mais ou menos ao salário de uns 6 anos de um mercenário. Ou a 3 Cavalos de guerra, ou a um quarto do que eles pagavam anualmente ao rei.

Ele estava tentando se enganar, dizendo para si mesmo que seria uma tarefa fácil, para se livrar logo daquela sensação horrível, quando na verdade o que ele sabia era que seria muito difícil fazer aquilo.

- Herus - ele raramente usava o nome do meio-irmão. - Por que está fazendo isso comigo? Eu não te fiz nada… - ele quase chorou. Sentiu seu peito se apertar.

- Ora Thevir. Jovem Thevir. - Herus simulou uma voz meiga. Tão bem que o irmão quase acreditou. - Eu odeio você. Eu odeio seu irmão. Eu odeio a sua falecida mãe que cantava para eu dormir. Odeio o meu pai por não ter me legitimado e dado a mim o que era meu por direito. Nem mesmo em seu leito de morte me reconheceu como filho legítimo. Eu faço as refeições depois de vocês, mas luto na frente de seus cavalos, segurando o estandarte - grande honra! Eu não sou ninguém aqui, e não sou ninguém por causa de vocês. Então eu vou pegar este dinheiro e me mandar. Mas não vou precisar me mandar como ladrão em fuga, por que você vai fazer o favor de roubar para mim. Ou melhor, você vai me pagar uma mísera parte do que sempre deveria ter sido meu, por direito!

Ele estava de pé quando terminou de falar. Furioso. As veias saltando. Thevir levantou-se também, para encará-lo. E virou-se sem dizer palavra, afastando-se de volta pelo corredor de calêndulas - uma excelente flor para inflamações.

- Ah! - Herus havia se lembrado de mais uma coisa. Thevir apenas parou, sem se virar. - Eu também quero a espada que foi de meu pai.

Isto era demais. Aquela espada estava em sua família por gerações. Ela ficou famosa na guerra contra os Albarazos, infiéis que haviam dominado a região no passado. E ninguém de sua família abriria mão dela, para alguém que não tivesse o mesmo sangue. Com o corpo tremendo de raiva Thevir se virou, olhou fundo nos olhos do irmão - naquele instante os dois estavam tão profundamente decididos, que foram cegados pelo ódio. - Eu vou conseguir o que você deseja. Me encontre no Monte das Pedras, à meia-noite, na lua nova. E nossa história terminará. Cada um seguirá seu caminho. É isso que você quer não é?

- Sim, irmãozinho. É isso que eu quero.


Os dias se passaram, a lua minguou. Os preparativos haviam sido feitos. 

Herus tinha mandado fazer uma carroça e preparou-a com dois cavalos e mantimentos para viagem.

Thevir tinha juntado ao longo das semanas pequenas jóias da casa e uma algibeira com moedas de ouro desviadas da coleta de impostos.

No almoço daquele dia os dois apenas se olharam, e sabiam que os caminhos trilhados até ali já não tinham mais volta. Thevir realmente amava com todo o seu jovem coração a jovem Allena e tinha tido pesadelos em todas as últimas noites onde ela ia sendo consumida por chamas azuis de fogo purificador, e ele gritava impotente, sem poder alcançá-la.

Herus sonhava com a vida que sempre lhe foi negada.

E, sob a luz das estrelas de uma noite sem luar, tudo se desvelou.


Herus havia, nos últimos anos, feito pequenos preparos para sua viagem, nada que chamasse a atenção. Algumas moedas aqui, uma jóia perdida ali... Ele se preparava para deixar aquele lugar, desde que a peste que levou seu pai, levou também sua esposa. Ele soube um dia o que era amor. Mas agora só lhe restava amargura. E, assim, falou ao irmão mais velho, no almoço daquele dia, que sabia que era Thevir quem estava sumindo com as coisas. Ele pretendia fugir com uma plebéia qualquer, disse ele ao lorde. Cínico e dissimulado, fez-se de bom moço em toda a história, mas mesmo assim o meio-irmão mais velho teve dificuldades em acreditar que seu jovem irmãozinho legítimo estaria lhe traindo. Herus, como prova final de que falava a verdade, disse para que mandasse um homem de confiança até o Monte das Pedras para ver se lá ele não encontraria ouro e uma carroça esperando para fugir. E adicionou ainda que nessa noite sem lua, o irmão menor deveria tentar levar também a espada de seu pai.


Thevir, estava decidido que mataria Herus naquela noite, usando a espada de seu pai. Ele era mais jovem, mas lutava melhor, e contaria com a ajuda de Allena para fazer uma emboscada no Monte das Pedras para seu meio-irmão.


Quando Allena chegou no Monte das Pedras com uma besta carrega, viu um soldado mexendo na carroça. E de uma só vez entendeu a armadilha na qual seu amado havia caído. Correu para o castelo para tentar avisá-lo, mas ao chegar lá, já era tarde. Thevir tinha sido encontrado pelo irmão mais velho removendo a espada de seu pai do pedestal em que a mantinham. Decepcionado, e com a mente envenenada por Herus o lorde não foi capaz de acreditar no irmão menor. Com o coração despedaçado, logo na manhã seguinte mandou-o para um monastério bem distante. Thevir tentou se explicar, mas nunca conseguiu.


Herus passou a ter a confiança do lorde, e com isso mais autonomia e liberdade. Passou a ser seu representante em terras distantes, viajou por muitas bandas, e enriqueceu. Quase não parava no castelo de seu falecido pai. Anos depois, o lorde veio a falecer num confronto e seu filho ainda era muito jovem, de modo que Herus foi nomeado seu regente. Voltou a ficar no castelo a maior parte do tempo. Mantinha sempre a espada do pai na cintura e educava o jovem lorde com rigidez e moralismo.  Ele já estava velho e cansado. E mesmo ainda amargurado, cinza e seco, tentava se convencer de que havia atingido a felicidade. Mas o Eterno o observava, e ele sabia disso. 


Numa noite de tempestade, uma das servas do castelo, que nunca tinha lhe chamado muito a atenção, entrou no seu quarto. Os trovões e a ventania lá fora ocultavam os sons de seus passos. Num dos clarões ela observou com ódio seu corpo adormecido. Noutro ela pegou a espada, e então a enfiou em sua barriga, em sua garganta… Enquanto ele se contorcia, sem nada enxergar, ela continuou estocando com toda a fúria de seu coração. Num último clarão, Herus já não era mais.


Aquela era Allena.


Ela fugiu naquela noite. Sua vingança havia finalmente se concretizado. Ela já não era mais a jovem alegre do início da história. Ela era uma mulher que carregava Rancor. E mesmo assim, ia direção ao monastério para onde havia sido mandado Thevir. Eles finalmente poderiam se reencontrar. Ela o tiraria de lá, e eles retornariam para o castelo, onde Thevir agora governaria, soberano.

Em sua fuga, com um cavalo roubado dos estábulos, sangue pingando dos braços e a tempestade açoitando a terra numa clara demonstração do descontentamento do Eterno com toda aquela história, a morte do lorde foi descoberta. Eu não havia dito, mas durante todo o tempo em que Allena satisfazia sua sede de vingança, uma prostituta que dormia com Herus naquela noite, gritava em desespero. Todo o castelo acordou.

E agora cães de caça perseguiam a fugitiva. Em algum momento, na escuridão, o cavalo quebrou a pata e foi deixado para trás, em agonia. A fuga era frenética e desvairada. Pés e patas enlameados, cruzando o antigo bosque, serra abaixo, aos tropeços. Uivos ecoando com os relâmpagos, e a respiração pesada de uma mulher que abraçava a morte.

Os cães a alcançaram quando ela chegou ao lago que hoje conhecemos como o Lago da Senhora. Ela entrou na água enregelante. Espada na mão. Nadou para o meio dele, fugindo do alcance dos cães. Os caçadores, que a tinham alcançado, não dispararam flecha alguma, mas não porque estava chovendo e elas seriam inúteis.

Mas porque a senhora Allena não sabia nadar.

Um clarão iluminou a lâmina da espada antes dela desaparecer para sempre sob o negrume das águas. Há quem diga que o ódio sobrevive a quem odeia. 

O que eu posso dizer é que ninguém nunca encontrou nem o corpo, nem a espada, que passou a ser conhecida, daquele dia em diante, como Rancor.


30 de setembro de 2017

O começo do fim

A criação de nosso mundo se deu com a chegada de dois poderosos irmãos ao nosso planeta. Os gêmeos Hironill e Arthanór, que decidiram se estabelecer aqui durante algum tempo. A massa energética, a princípio, resumia o planeta que um dia seria conhecido como Terra. Tamanho poder chamou a atenção dos dois virtuosos controladores.
Moldaram então o mundo a seu desejo, nada lhes era mais prazeroso. Juntos controlavam o infinito, e suas disputas de poder, quando ocorriam, levavam milênios.
Com seus poderes, juntos, transformaram a energia em água, fogo, terra e ar.
Primeiramente a terra, que daria suporte ao restante. Metamorfosearam parte da poderosa energia em rocha irregular, criando uma enorme superfície a qual, em seguida, cobririam com água, preenchendo os espaços entre os picos pedregosos. No espaço restante puseram o ar, que soprava em todas as direções movimentando a água e tangendo a rocha. Os irmãos puseram o fogo, então, sob tudo aquilo. O elemento mais rebelde, que anseia por espaço para reinar. Durante algum tempo o espaço reservado a ele fora o bastante, mas logo tentou sair, abrindo caminhos através da rocha e jorrando para a superfície.

O mundo conservou-se assim durante muito tempo. Os irmãos assistiam àquilo fascinados, orgulhosos de seu trabalho.
Até que, de uma fonte desconhecida, uma tempestade atormentou a Terra. Enfureceu os elementos, e em frente aos irmãos surgiram duas mulheres.
Como se desabrochassem do nada surgiram Neya e Teya. Elas foram tomadas por Hironill e seu irmão, e por eles educadas, moldadas como a energia para agirem da forma que seus maridos ordenavam. Eles as concederam também a arte da modelagem multiversal e as ensinaram a forma apropriada de fazerem isso: através da magia. Dessa forma, Neya desenvolveu o poder da cura e Teya o poder da morte, mas nenhum desses poderes era útil se não havia nada o que curar ou o que matar.
Começaram então a providenciar isso.
Entretanto, antes de se ocuparem com o povoamento do planeta, tinham de deixar alguém tomando conta dos elementos, para que não se revoltassem novamente.
Foi quando tiveram uma idéia. Invocaram o poder primordial de cada um dos elementos e os transformaram em poderosas entidades que os controlariam.

Tendo então o planeta sob controle iniciaram a reprodução, gerando outras criaturas, outros deuses e estes novos deuses, mais deuses... A magia teve um papel importantíssimo nisso tudo, e os descendentes dos Criadores, como eram chamados, começaram a modelar o mundo também. Desenvolviam novas técnicas de magia, criavam novas raças, novas espécies. Alguns deuses criaram os metais, outros a madeira, as árvores, os animais, os minérios... tudo!
Passeavam pela terra recém criada, caminhando pelo mundo quando quisessem. Criaram os orcs, elfos, anões, halflings, gnomos, fadas, e tudo que a criatividade os permitia, não passavam de crianças engenhosas em busca de diversão.
Assim o mundo começara a formar-se de fato. Rusticamente.
Alguns dos seres primordiais receberam doses extras da magia inconstante que pairava sobre a terra tornando-se tão poderosos quanto os deuses menores, filhos do duplo casal gêmeo.

Durante esta época ergueram Athnarda onoe Varinn, como denominaram sua cidade e de lá observavam o que se passava no mundo habitado por seus brinquedos, vez ou outra interferindo em suas vidas.
Hironill e seu irmão não alteraram mais de forma alguma o mundo, pois seria desleal com seus filhos, já que eles eram portadores de tanto poder.
Porém, sem que ninguém soubesse além de sua mulher, que o ajudou, Arthanór criou uma raça extremamente poderosa. Com características superiores a qualquer outra já criada por seus descendentes. Seus corações foram criados com puro ódio e vilania, o desejo de sangue era ilimitado e insaciável.
Essa raça tornou-se o exército particular de Arthanór que os fez marchar sobre toda a terra, caçando, matando e aniquilando tudo que fora criado até então. Os deuses irritadíssimos com o egoísmo de seu ascendente reclamaram a terra de volta, mas Arthanór apenas os ignorou. Correram então à procura de Hironill, que veio juntar-se a eles para saber o que acontecia.
O deus da justiça ficou ao lado dos filhos, que apontavam Arthanór como um traidor egoísta. E foi com isso que uma nova guerra começou. A primeira guerra a envolver tantos indivíduos, mas apenas mais uma na incontável lista de duelos entre os irmãos, que sempre terminavam em empates.

A disputa rachou montanhas, dividiu mares, parou o vento e atiçou o fogo. Os disparos de energia rompiam com a capacidade de compreensão dos mortais que assistiam, e participavam do combate, adotando um lado contra o qual lutar.
Os irmãos lutavam vorazmente com suas armas divinas que foram forjadas durante os milênios que se sucederam à Tempestade. Teya chacinava seus oponentes, arrancando-lhes a vida que tinham e transferindo-os para seu lado, na forma de aliados espectrais. Neya lutava para manter vivos os feridos que desfaleciam, e lançava-os de volta ao combate.
Deuses e mortais caíram aos milhares na Grande Guerra, e jamais voltaram a viver. O sangue manchou o planeta, seu campo de batalha, e incrustou-se nas camadas mais profundas da terra.
Foi quando Hironill teve um plano. Pediu para que alguns de seus descendentes buscassem os elementais, e selassem seus espíritos nas preciosas pedras que lhes servia de coração. Seus artífices trabalharam em cinco poderosas armas, quatro delas acomodariam os elementais. E a espada, que era a quinta, alojaria o poder de Arthanór, para que este nunca mais pudesse usá-lo para o mal.
Os deuses obedeceram a seu pedido e buscaram durante décadas pelos quatro espíritos primordiais. Enquanto isso Hironill resistia às baixas em seu exército ao lado de sua mulher e seus descendentes. Arthanór e Teya ansiavam pela aniquilação das raças frágeis criadas por seus parentes, e regozijavam-se pelas mortes e pelas vidas que deixavam o lado do irmão para juntarem-se ao deles, na forma espectral da morte tão bem controlada por sua deusa.

Em dado momento, anos mais tarde, quando a guerra estava prestes a ter um fim, Hironill, trazendo consigo a espada mais poderosa já forjada, seguido por outros quatro deuses que empunhavam os artefatos portadores das forças mais extraordinárias, avançou sobre o campo sangrento em direção a Arthanór.
O deus sobressaltou-se ao avistar os elementos ao lado do irmão e tentou fugir. Mas era tarde demais, o poder imensurável das armas insólitas devastou o campo, enquanto Hironill pisoteava o exército mortuário de seu irmão investindo contra ele.
Hironill segurava a espada apontando na direção do peito de Arthanór. Tão leve, tão resistente, tão maleável e tão destrutiva. Seguido por seus filhos e sua mulher não preocupou-se com o exército que se opunha a ele. Este fora dizimado, não importava quantas vezes fosse ressuscitado.
Vulcões irrompiam dos lugares atingidos pelo machado portador da pedra do fogo, furações se formavam no rastro dos projéteis disparados pelo arco de vento. O martelo criava terremotos e fissuras enormes ao colidir-se com o chão, o tridente, terremotos e tempestades.
A espada segura por Hironill silvava de excitação, pois sabia que sua sina seria sanada.
Seu fado fora predito durante sua forja. As inscrições no aço definiam seu emprego. O metal desejava isso, o metal ansiava pelo sangue divino do perverso, e cruel, Arthanór.
Mal sabia Hironill que com aquele golpe esgotaria quase por completo a energia do multiverso. Afinal, ele e seu irmão eram, em suma, a própria energia criadora de tudo.

O golpe certeiro atingiu o coração de Arthanór. Os planos vibraram com o impacto, o multiverso sentiu a energia que o nutria sendo dragada rapidamente pela lâmina da espada, indo depositar-se na grande pedra lilás incrustada em seu punho.
Sóis e estrelas faleceram junto à força de Arthanór. Planos se aglutinaram transformando-se em apenas um, sem força para manterem-se separados. Teya gritou agonizante e contorceu-se de dor e sofrimento. As sombras dos derrotados se desfizeram e se recolheram ao plano dos mortos.
Os corações dos elementais se soltaram das quatro armas, tal como a pedra que aprisionara o poder de Arthanór, e saltaram para o céu.
O fluxo descomunal que percorrera o fio da espada rompeu-a em seis pedaços, sem contar com o punho que era o sétimo, preso nas poderosas mãos de Hironill.
Uma explosão de cores ofuscou a todos no campo de batalha que era o mundo, quando o único ponto de luz que eram as cinco pedras, bem alto, a voarem para o céu rebentou em todas as direções reorganizando as estrelas e os astros celestes. Elas despencaram de volta na terra e nunca mais foram encontradas por nenhum deus.
Enquanto Hironill regozijava-se pela vitória sobre seu irmão maléfico, não notou que parte de seu poder também fora dragado pelo vórtice mortuário.
Então, o corpo impotente e furioso de Arthanór, sua mulher Teya e sua cria vil de Demônios e outros lacaios, foram encarcerados sob o fogo da Terra, em Tenterus ono Etherus Prisnaon. Onde os mortos, maus em vida, eram aprisionados. Onde o poço dos mortos acolhe as almas ruins e as lava num eterno turbilhão de dor e agonia.

Hironill, Neya e seus descendentes retornaram à Athnarda onoe Varinn, e criaram os humanos e os dragões. Com a força que lhe restava, Hironill requintou e aperfeiçoou as duas raças, tornando-as poderosíssimas criaturas. Incumbiu-as de proteger o planeta contras as investidas de Arthanór, pois o supremo deus da bondade proibira terminantemente que qualquer outro deus interferisse na Terra, dando livre arbítrio a seus títeres.

Infelizmente, a bondade de Hironill o cegara para a possível desvirtuação de suas criações. Assumindo que seriam boas como ele, e nunca tendo criado nenhuma outra raça antes, esqueceu-se de privar-lhes da ganância, do ódio, da inveja, da avareza.
E assim o mundo evoluiu. As sociedades se formaram, criaram impérios, misturaram culturas e mesclaram-se, as raças. Até que os humanos desejaram mais, mas não havia mais o que tomar... Teriam de ficar com o dos outros, e sua sede por poder e a corrida por riquezas inundou seus espíritos e logo deram vazão aos outros sentimentos ruins, engatilhando a corrupção de suas almas, e estas começaram a tender para o caos.

Milhares de anos se passaram. Tempo o bastante para que o ritual de sacrifício se concretizasse e para que a busca de Arthanór no mundo material se completasse.
Ao aceitar a morte eterna de sua esposa para dar-lhe seu ínfimo poder, o deus conseguiu romper o véu que o separava do mundo material e dominar o corpo de um humano. Tamanha fora a humilhação sentida ao dominar um ser criado por seu irmão que quase desistiu de seus planos. Mas ao notar a versatilidade daqueles seres bípedes, e a tendência de suas almas a vilania, tomou gosto por sua labuta.
Vagou pelo mundo inteiramente absorto em sua busca. O poder lhe chamava, a força de seu coração o guiava, e encontrou a pedra lilás.
Foi quando Hironill percebeu a presença de seu irmão no lar de seus protegidos e o trancou de volta no Submundo, reforçando as saídas e entradas para que o maléfico deus jamais deixasse o mundo inferior novamente.
Porém...
Hironill não notara a pedra escondida nas mãos do irmão. Este voltou felicíssimo para o mundo inferior, de volta em seu próprio corpo, com a pedra que aprisionara seu poder, agora aprisionada em seus dedos.
Arthanór lançou-se contra as barreiras mágicas que o encarceravam naquele lugar, certo de que seu poder, contido na pedra, seria mais que o suficiente para superar meras paredes criadas por seu gêmeo.
Assustou-se a ricochetear no muro invisível e retornar ao Submundo. Furioso, repetiu o golpe, apenas para que a mesma cena se repetisse.
Olhou para a pedra segura em seus dedos rijos, suas sobrancelhas encontrando-se numa carranca de amedrontadora fúria. A jóia refletia levemente o mar de fogo que era o céu de seu mundo particular e tênue luz esverdeada que advinha do poço dos mortos, e a agudeza com que terminava abruptamente fez Arthanór chegar à óbvia conclusão: A pedra fora partida.
O urro teria sido ouvido em todo o multiverso, reverberando pelo ar e açulando os véus de divisão dos planos. Mas apenas ele e a escória de demônios que o seguia escutaram seu brado de frustração. O grito resumia em uma única nota todo o furor de sua alma, toda a vontade de se libertar, todo o ódio acumulado, a fúria pela morte vã de sua mulher, a fúria pela perda de tudo o que tinha. O desejo de se vingar de seu irmão e de todos que a ele estavam ligados... TODOS! Gritou novamente.

Outros anos se passaram, e era inacreditável como aqueles seres bestiais e agressivos que seu irmão tinha criado se tornaram tão requintados e civilizados. E claro, mais bestiais e agressivos. As sociedades que construíam. As cidades que erguiam... deixavam as cabanas de lado e trabalhavam em casas de pedras.
Arthanór assistia a tudo isso enquanto arquitetava seu plano de fuga, tinha tempo mais do que de sobra para pensar e trabalhar seu plano. Sem ter sido sua intenção, seu corpo deixou o Submundo e invadiu o sonho de um homem. Ele a princípio não compreendeu, mas então percebeu que não passava de uma projeção astral produzida pela jóia que manuseava.

E foi assim que o poderoso Arthanór pôde um dia começar sua busca pela libertação, e retornar ao mundo para vingar-se de tudo que o fizeram. E foi quando as gigantescas guerras começaram a lotar seus salões de almas sujas e peçonhentas, bem como as quais mais se identificava.

O homem que selecionara era um poderoso general. Comandava suas tropas de trás das muralhas de sua cidade. Em meio à guerra, ele ouviu o chamado de Arthanór. Foi numa noite de cerco, quando suas tropas caíram aos montes, que enquanto dormia sonhou com uma catedral construída de ossos.
As pilastras eram formadas de crânios, as paredes de ossos em geral e algumas tapeçarias velhas e empoeiradas de predominância lilás a enfeitavam. O altar era uma grande costela coberta com uma toalha esfarrapada, e atrás do altar, sentado num trono ósseo de estofado gasto, estava Arthanór. Vestido com o que a milênios teriam sido roupas suntuosas.
- Quem é você? – Perguntou o homem assustado.
- Apresentações são pouco importantes – respondeu o deus olhando o homem de cima e falando com uma calma intimidante. – Vim apenas comunicar-lhe que escolhi você...
- Que história é essa? – Perguntou o homem olhando ao redor, escondendo o pavor que sentia. – O que quer comigo?
- Escolhi você... – continuou Arthanór, não podendo falar a coisa errada, pois sabia que seus poderes não podiam chegar ao plano material, mas no mundo dos sonhos, tudo era possível. – para me ajudar com uma tarefa importantíssima. – informou ao homem.
- Não costumo ceder a pedidos de aparições em meus sonhos – disse o homem, perdendo um pouco do terror que sentia.
Arthanór ergueu os braços e os moveu rispidamente, lançando o homem a metros de altura, estatelando-o contra o teto da catedral. O sangue escorreu pelas costas do homem que caiu de volta no chão, apavorado.
- Não ouse zombar de mim, mortal! – Rugiu Arthanór perdendo o controle. – Não seja estúpido o bastante para isso. Venho aqui oferecer-lhe o que deseja, em troca do que eu desejo.
O homem enxugou o sangue em sua boca com a manga de sua túnica.
- E o que é que eu quero? – Perguntou, em tom desafiador, fechando a cara, duvidando da veracidade daquela cena.
- Poder, glória, vida eterna, vitória contra o exército que te cerca, mulheres... – Arthanór inferia a partir daquilo que sabia depois de tanto tempo estudando sua raça. – tudo aquilo que eu posso propiciar-lhe... Desde que aceite colaborar com meu pedido – completou, com um tom mais afável.
- E qual é o seu pedido? – Indagou o homem. Arthanór sorriu, conhecia também esse lado dos humanos. Se ele não fosse aceitar, simplesmente teria negado, mas não o fez. Ele queria...
- É algo simples – começou Arthanór, tirando de dentro da túnica púrpura o pingente que prendia sua pedra de poder. – Deve conseguir outras quatro pedras iguais a essa.
O homem olhou encantado para a pedra que girava e oscilava, pendendo do extremo da corrente dourada na qual Arthanór a havia prendido.
- Isso meu bom homem – disse Arthanór, com nojo de si mesmo pelas palavras doces que usava. – É o artefato mais poderoso do multiverso. E são necessárias para me trazer de volta a vida.
O homem caminhava hipnotizado na direção da pedra.
- Você então aceita, através dos meios que preferir, buscar as quatro outras pedras de poder, conseguir tanto sangue quanto o que eu derramei em vida e tanto ouro quanto o necessário para erguer um colosso, grande o bastante, que me servirá de corpo em seu mundo material? Unir esses três elementos e trazer-me de volta a vida, da forma correta? – Perguntou o deus, preparando a magia de encarceramento verbal, um juramento sagrado, que não pode ser quebrado. Preparara seus dizeres com antecedência tentando evitar brechas.
O homem balbuciou uma resposta incoerente deslumbrado pela jóia, e pelas promessas dadas pelo deus.
- Você me dará o que prometeu quando eu lhe trouxer à vida? – Perguntou o homem, quase sussurrando. Esticava os braços tentando alcançar a pedra.
- Sim! – Concordou Arthanór vitorioso.
Ele, que afastava a jóia do alcance do homem que se movia lentamente em sua direção, deixou-a cair sobre suas mãos abertas.
Uniu suas mãos providas de garras e escamas grossas às do homem, mantendo a jóia, sua única fonte de poder, entre elas. Uma explosão violeta irrompeu do toque, selando a promessa de ambos. Por mais ambígua que fosse a de Arthanór.
O homem caiu em agonia, enquanto o deus apertava a jóia contra a palma de suas mãos estendidas, proferindo velozmente o longo encanto, sem errar uma única vez.
Ao soltar a jóia, deixando-a com o homem, foi lançado de volta ao seu plano: Tenterus ono Etherus Prisnaon. E o homem ao seu: Terra.

- ERGAM-SE! – Gritava ele, entusiasmado, segurando o pingente em seu peito. – VAMOS POR ESSES CÃES SARNENTOS PARA CORRER!

A magnificência daquela jóia era inimaginável.


1 de agosto de 2017

À caminho de casa

Justo agora, à caminho de casa, dei-me conta de algo que pareceu-me acertadíssimo sobre Perfeição.

Não sobre o que é perfeição. Afinal, por mais que definir esta palavra possa parecer fácil, definir, ‘perfeitamente’, o que ela quer dizer na prática, é quase impossível. Me parece ser como contar até infinito, ou caminhar até o horizonte.

Pensei então em figuras que geralmente são consideradas perfeitas, ou que ao menos nos servem de exemplo para entender a perfeição. E nem mesmo elas o são. Por que, como é possível ser perfeito? Vivemos em um mundo com outros seres humanos, e a perfeição não funciona em sociedade.

Em cada canto dizem uma coisa. Nesta porção do mundo, cristã, somos pautados por uma moral dicotômica de certo e errado, de bem e mal, do belo e do horrível... E mesmo que seguíssemos os passos de Jesus um camarada, que até mesmo eu, ateu, tenho grande respeito e admiração, acabaríamos de um modo ou de outro apenas mortos, como ele. Já que pra uma galera daquela época a perfeição dele não servia.

Vivemos em um mundo onde há muitas diferentes perfeições.

Talvez seja essa a dantesca causa da dificuldade de definir Perfeição.

No entanto, há nisso tudo um outro problema – Gerado por estas expectativas coletivas com relação a própria humanidade: Por que é que queremos ser perfeitos?

As religiões, os mitos, os heróis, tantas destas histórias nos fazem crer em super humanos, nos fazem crer que existe uma elite de seres humanos tão, mas tão fodas, que nós precisamos ser sempre melhores. Que precisamos, ao menos um dia, ser perfeitos.

E se parássemos por uns instantes de tentarmos “ser perfeitos” e apenas “ser”?

Talvez aflorassem alguns monstros. Talvez aflorasse o que sentimos de verdade, quem, verdadeiramente, queremos ser. Talvez o que somos seja muito feio, terrível até. Mas essa feiura é de verdade? Nós realmente nos achamos tão terríveis assim, por pensar o que pensamos, por sentir o que sentimos? Ou a lente que nosso povo nos deu para nos olharmos é que nos distorce tão brutalmente a ponto de não nos reconhecermos?

Nos fazem acreditar que somos míopes de alma. Nos mostram umas almas, então, para servir de referência. – É assim que você tem que ser. Siga o exemplo. Dê o exemplo.

Nos negamos o tempo todo, pois queremos ser perfeitos.

Se é que queremos ser perfeitos. Pra quê? E pra quem?

Mas sempre tentamos. E bem quando achamos que estamos chegando mais perto, vem alguém nos dizer que não é assim. Vem alguém e nos crucifica, vem alguém e ateia fogo em nosso corpo, vem alguém e nos bate na rua, vem alguém e nos xinga no trânsito, vem alguém e grita conosco no trabalho, vem alguém e nos educa na escola, vem alguém e nos ama em casa.

A perfeição... é nossa, ou deles?

Quem sabe seja uma perfeição coletiva... Besteira.

Será que uma ou outra religião que é perfeita? Uma está certa e as demais equivocadas?!

É uma identidade só que posso ter? Ou várias? Mas tenho que ser menino, né?

E o que eu sou? E o que eu quero ser? E o que eu posso ser?

Só é perfeito se eu tiver o aval?

O teu aval?

Meu ovo.

Estou à caminho de casa.
E nela eu sou quem eu quiser ser.
E você também deveria, ou não. Seja sua própria perfeição.

Mas seja.

Não deixemos de Ser.

22 de março de 2017

Ser eu

Já faz muito tempo que não escrevo.
Talvez por que ter perdido-me um pouco no movimento de escutar.
Não queria dizer verdades. Queria escutar as verdades dos outros, mas deixei de escutar um pouco a mim, e, na verdade, acho que foi por isso que parei de escrever.
Não queria escutar-me mais.
É mais facil escutar o outro, responder ao outro, refletir o outro.
É impossível, no entanto, ser o outro, de modo que só resta a mim ser eu mesmo.
Mas são tantos eus.
'Eu' é tanta coisa, que às vezes cansa... às vezes doi...
Escrevo agora, por que, depois dos meus dois últimos dias, era só o que me faltava - escrever.
Fui jogado num quarto escuro onde apenas eu e eu estávamos.
Fizemos de tudo. Primeiro nos encaramos. Ficamos um longo tempo assim, tentando reconhecer no eu refletido o eu contido. Choramos, sorrimos, nos abraçamos, nos amamos e conversamos demais.
Por fim escrevemos juntos... Isto, que não sei o que é.

Deixar de escrever foi uma maneira de deixar viver os tantos "eus" que sempre vivi. Em algum momento uma fuga, mas na verdade é o encontro.
Com o tempo, pensamos em coisas e logo deixamos de pensar. Tempo é transformação, e com ele nos transformamos.
Contudo, negar o que se é, ou fugir do que se sente não é transformação, senão destruição.
Medo.
Eu quero ser quem sou, escrever o que sonho, sonhar acordado. Ver o mundo belo com as cores que eu quiser ver.
O outro sempre estará no horizonte, o outro andará comigo de mãos dadas.
E descobri que sendo eu mesmo, posso ser o outro de alguém.
Ser quem se é, não é algo fácil de se ser.
Mas se não formos, quem será, não é mesmo?
Sendo assim, naquele dia, naquele quarto decidi que seria eu.
Não significa que o esteja sendo, tanto quanto eu gostaria. Mas estou sendo o máximo que posso ser.
E, quem sabe, com o tempo, seja cada vez mais eu.
E convido todos os outros que quiserem ser comigo, eu e você.
Com isto que não sei o que é, volto a escrever.

2 de setembro de 2015

O que te faz acordar todos os dias?



Dentro da minha cabeça, todas as pessoas parecem ter a resposta pra isso. E eu me sinto meio idiota de não saber como responder. Eu penso e penso sobre isso, algumas possibilidades disputam entre si para ver qual delas será proferida, mas nenhuma nunca sai vitoriosa. Eu tenho sonhos, objetivos, ideias, família, amigos, trabalhos, saudades, esperança e um mundo inteiro de possibilidades para serem exploradas. Tento e tento dar conta da vida, fazê-la valer, fazer diferença, mas ‘vida’ é um conceito tão abstrato que às vezes parece que não fazer nada é até mais vantajoso, ou, no mínimo, mais prazeroso do que viver.

Outro conceito dificílimo, embora muito mais notável. O que é a vida? Quando comparada ao prazer? Sinto que muita gente acaba confundindo as duas coisas. Ou sou eu que as dissocio demais?

Sinto que às vezes minha vida é uma solução tão densa e saturada que o prazer decanta, e forma uma camada espessa e pegajosa lá no fundo, me deixando apenas duas alternativas: Ou me afogo nela tentando alcançar aquele prazer ou observo-a, lá de cima da beirinha do copo, apenas imaginando o que eu poderia encontrar lá no fundo.

Obviamente tem algo errado nisso. Mas acredite, eu já tentei mergulhar algumas vezes e ver no que dá. Neste exato momento estou tentando avaliar como será meu próximo mergulho.

Você quer ser feliz? Você quer construir um novo mundo? Você quer deixar sua marca? Você quer ajudar? Você quer alcançar um sonho? Você quer fazer alguém feliz? Você quer vingança? Quer reatar seus laços com alguém? Quer fazer arte? Quer ser lembrado? Quer viver uma vida memorável? Quer acumular riquezas? Quer causar inveja? Conquistar o que nunca teve? Garantir para quem ama uma vida repleta de alegrias? Viajar? Conhecer o mundo? Conhecer as pessoas? Aprender tudo o que for possível? Deitar-se com quem ama? Ser amado? Amar? Sonhar? Dormir? Viver? Morrer? Que chegue logo o sábado? Que aquela comida esteja boa? Que quando chova sua casa não inunde? Que aquele erro que você cometeu não se transforme numa catástrofe? Que aquele segredo, ninguém descubra? Que quem se foi, volte? Seja lá o que você quer...

Por que você quer?

E este querer realmente te faz levantar todos os dias?

E quando conseguir o que tanto almeja?

E quando nada mais fizer diferença?

Acho que para viver, temos que abrir mão da própria vida. Compreender o significado do fim.

Acreditar.

Se as coisas não acabassem não seriam coisas, seriam infinito... e não queira entender o infinito, por que tentar entender o infinito é apegar-se ao fim e nem tudo acaba.

Só aquilo que conhecemos.

Existe um infinito de coisas desconhecidas, e é nisso que estou apostando, no meu próximo pulo.

É isso que me faz acordar todos os dias eu acho, o fato de o que eu sou, ainda não ser.

Até que eu acabe.

(Continua...)