A cidade de Okayama estava escura
e vazia naquela noite. As luzes das ruas estavam apagadas, talvez sequer tenham
sido acesas naquele dia e, apenas raras vezes, uma chama alaranjada surgia,
numa ou outra casa, para afastar as sombras que ameaçavam cobrir tudo. Uma garoa
fina lançava-se sobre todo o lugar, escorria pelos telhados, gotejava no chão.
Era esse todo o movimento que havia.
Tábuas cobriam as janelas e os
rostos das crianças que espiavam lá fora, abafavam as vozes das famílias que se
punham ao redor do fogo tentando esquentar-se e duelavam com o frio para
mantê-lo afastado. No castelo, as árvores do jardim balançavam suavemente. Com
um constante farfalhar, suas copas se encrespavam e se arrastavam na muralha,
produzindo sons sussurrados que mais pareciam segredos sendo contados, com a
devida discrição.
No meio do pátio, sentado em
posição formal, um homem solitário meditava, sem parecer importar-se com o frio
que se agarrava a sua pele e arrastava-se por debaixo de seu quimono,
escorrendo por seu corpo musculoso. Ele ouvia atentamente todos os sons ao seu
redor, e contemplava o movimento cadenciado da chuva, do vento, das folhas, dos
peixes no lago. E tentava intuir aquela forma de apresentação da natureza,
tentando esgotar o sentido que havia nela.
Seu espírito captava cada
sibilar, cada arrastar, cada forma... Sua respiração inflava seu corpo com o
ritmo cadenciado do ambiente que o cercava, e, por um breve instante, sob o Obi
onde estavam presas suas espadas, uma fisgada aguda e dolorosa arrebatou sua
atenção. Mas ela persistiu, forçando-o a levar a mão até a cicatriz. Contorcendo
o rosto ele praguejou sua fraqueza naquele momento, tentando se recompor.
Aquele homem era Tadashi.
A cicatriz fazia-o lembrar de seu
Daimyo, Ukita Hideie, e de sua desavença há poucos dias quando este partira
para a batalha que aconteceria nos campos de Sekigahara, e deixava-o em Okayama
com sua mulher e filhos. Tadashi havia prometido, há dez anos, lealdade eterna
ao seu senhor, jurando protegê-lo, segui-lo, defendê-lo e obedecê-lo. E, até
então, nunca tinha desonrado sua palavra. Sua cicatriz lembrava-o bem disso.
Uma lança de um cavaleiro que atravessou sua coxa em uma das muitas batalhas na
campanha da Coréia, enquanto defendia seu Daimyo.
Mas como honrar o juramento de
protegê-lo e obedecê-lo, se sua ordem foi de ficar no palácio, a quilômetros de
distância do conflito para o qual seu senhor se dirigia comandando um
destacamento em nome da coalizão ocidental?
Como um samurai, Tadashi, tentava
agora resolver este conflito dentro de si. Ajoelhado, sentia a dor passar. Mas
sentiu em seu peito um aperto, por sentir que aquela dor, naquela noite, possuía
um sentido mais profundo do que o próprio flagelo. Ele entendeu, por fim, o
segredo que o vento do norte trazia consigo...
Era a noite da Batalha.
E seu senhor havia sido
derrotado.