Sugestões, Pedidos e Dúvidas

Bem, espero que todos sintam-se livres para requisitar trabalhos específicos, sugerir procedimentos de postagem, fazer algum pedido ou tirar qualquer dúvida.

Agradeço pelas visualizações, mas agradecerei ainda mais pela participação no trabalho! Sintam-se livres para comentar e participar da construção das obras que serão para todos nós!

Se não quiserem fazer isso diretamente aqui, em alguns dos posts, há ainda a página no facebook



28 de setembro de 2013

Conto Online - Ímpios Fortalários (Parte 1)



O mundo permanecia negro num matiz profundo e opressor. Os astros tinham sido dragados pelas trevas e a chuva caía intermitentemente, ameaçando parar, entretanto uma nova trovoada explodia em luz brilhante e ofuscante, e logo o céu desabava outra vez.

De encontro ao mar as grossas gotas de chuva estouravam na massa d'água que se jogava contra o paredão rochoso na base da irregular montanha que se erguia como um monstro, uma enorme serpente escamosa saída das profundezas do oceano tão ameaçadora que, brilhando com as luzes dos trovões, parecia mover-se e retorcer-se celebrando o caos.

No topo da montanha estava a fortaleza de Ark'höps, açoitada pelo vento uivante e pela tempestade já habitual. Suas enormes torres inteiramente fechadas abrigavam algo muito pior do que um tempestuoso dia, abrigavam os imortais demônios, exilados e acorrentados magicamente pelos ancestrais conhecimentos descendentes de Ohmân, o Imaculado.

O universo interior e exterior da fortaleza se confundiam por conta da interferência que um possuía sobre o outro. Há anos Ohmân construiu a fortaleza com seus doze discípulos e encarregou as forças naturalmente bravias que cercavam a imponente montanha escarpada de gerar a energia necessária para manter resiliente a prisão que havia criado para os impenitentes demônios, que por sua vez agitavam todo o cosmos circundante deixando-o ainda mais conturbado, por conta de sua natureza de caos descomedida.

A única entrada e saída da fortaleza poderia ser encontrada no topo da montanha no pátio central, cercada por 8 muralhas, uma mais alta que a outra, sendo a do centro a maior de todas, atingindo metade da altura das doze torres que possuíam trinta metros. Cada uma variando de quinze a vinte e cinco metros de espessura de pedra e metal. 

As dependências da fortaleza eram construídas em níveis subterrâneos, sendo o mais baixo o que abrigava as criaturas mais infames e perniciosas. E era lá que ele estava. As costas curvadas, enrijecidas pelo tempo que foi forçado a manter a mesma posição de cruz, visto que seus braços, agrilhoados por pesadas correntes eram mantidos, imóveis, esticados para as laterais de seu robusto corpo. Suas pernas estavam livres, mas não era possível movê-las por conta da energia que tinha sido consumida dele.

Sentia frio, mas não conseguia tremer, fome mas não lhe traziam comida, cansaço mas não dormia. Sua cabeça abaixada deixava seus grossos cabelos negros cascatearem pela lateral do rosto ossudo e pelos ombros, exibindo os espinhos que despontavam de cada uma de suas vértebras e os oito chifres curvos que se retorciam do lado externo de seu crânio, como uma coroa córnea. Sua pele vermelho-escuro exibia as fibras musculares tensionadas e inflexíveis refletindo a parca luz alaranjada que era emitida de orbes flutuantes sobre arandelas.

Não havia uma cela, propriamente dita, pois não era necessária. Ele estava detido numa ampla sala sob o centro de um teto abobadado em cruzaria cujo acesso era possível apenas magicamente, ou abrindo-se um buraco em alguma das paredes que ele sabia possuírem, em qualquer direção, ao menos duzentos metros de espessura de rocha sólida, para se chegar a uma queda de não menos do que quinhentos metros. E por isso estava ali, absorto, observando um ponto fixo próximo do seu casco direito do enorme mosaico que preenchia o chão, onde um azulejo minúsculo estava faltando.

Nada mais do que uma vibração, um zumbido permanente, parecia perturbar a atmosfera da quieta e imutável sala. Por uma eternidade isso foi tudo o que ele conseguiu sentir. E esse zumbido o irritava. O mundo o irritava, os homens, a existência a própria vida e até a morte o irritavam. Talvez agora não precisasse mais se sentir irritado. Mas o maldito zumbido não permitia que ele se esquecesse que ainda estava ali, que ainda estava vivo, e criaturas como ele permanecem vivas até que a tarefa que os tenha gerado seja concluída.

E por conta da tarefa que ele tem a cumprir os Ímpios Cavaleiros da Ordem Ohmâniana da Fortaleza de Ark'höps o trancafiaram no recôndito de seu domínio, pois tem o dever de atrasar tal acontecimento. 

Mas sabem que nunca poderão impedi-lo.

14 de setembro de 2013

Livro (Em Processo) - Capítulo Cinco d'Os Guardiões de Tarkataz

V
De volta para Orull, e a língua do vento

Theodor havia chegado em casa esbaforido. Andava de um lado para o outro, em silêncio, enrugando a testa e pensando. Tudo aconteceu muito rápido. Há dois dias ele tinha chegado, e agora ele terá de ir novamente. Sobre o que será esse raio de assembléia? Pensava ele furioso enquanto caminhava a passos longos fazendo o assoalho de madeira protestar sob suas botas de couro marrom. E...  sou apenas um soldado, não entendo... Realmente não entendo. Outro problema seriam as conseqüências... o que poderia acontecer se eu não fosse?

- Já voltou? – Era sua mãe. Ela acabara de chegar à cozinha, de camisola.

- Si... sim – respondeu ele assustando-se.

- Que cara é essa? Parece nervoso.

- Pois estou.

- O que houve? – Perguntou ela aproximando-se de seu filho gentilmente.

- Um mensageiro de Orull veio até a cidade. Chegou há pouco. Ele trouxe uma intimação para que eu comparecesse a uma assembléia na capital. Mas eu não sei o que devo fazer...

- O que acha que deve ser feito? – perguntou sua mãe com um tom carinhoso.

- Minha honra quer ir, mas meu coração deseja ficar.

Sua mãe o olhou com afeto e abraçou-o. Logo em seguida batidas fortes na porta fizeram-nos se separarem. Leon, Nillah e Oto irromperam cozinha adentro. Victória e Theodor viraram-se para eles.

- Desculpe-nos senhorita Victória – apressou-se em dizer Nillah. – Pela avançada hora.

- Claro – respondeu ela. – O que desejam crianças?

- Viemos falar com Theo – respondeu Leon.

- Olá – respondeu.

- Meu irmão me disse que partiria de volta para Orull – disse Oto. – Isso é verdade?

- A verdade é que um mensageiro me trouxe uma mensagem, dizendo para que eu voltasse, mas não quero ir. Pelo menos não tão depressa. Queria passar mais um tempo aqui, com vocês, porém talvez isso me cause problemas, a carta era endereçada a mim, com uma ordem expressa do Rei.

Nillah soltou um gritinho de espanto. Os outros dois amigos observaram-no surpresos.

- Devo partir hoje – continuou ele. – O homem me levará junto dele, em sua montaria alada.

- Montaria alada? – Perguntou Leon pasmo.

- Sim, os mensageiros especiais de Orull montam águias gigantes.

- Incrível! Mais um motivo para ir!

- Leon! – Repreendeu-o Nillah – Tudo correrá bem Theo – disse ela meigamente.

- Theodor... – Disse Oto. – Não se preocupe, nós ainda estaremos aqui quando você voltar. Esperando pelo novo general de Orull.

Theodor sorriu agradecido.

- Vamos então! – Disse Victória. – Mecham-se e ajudem seu amigo a preparar as malas!

- Isso mesmo!

- Vamos lá! – disse Theodor.

Uma lágrima de alegria encheu-lhe os olhos enquanto os três amigos o abraçavam. E sua mãe, com os braços cruzados, assistia contente a cena de amizade.

Os quatro juntos foram até o quarto de Theodor. Conversando e rindo. Theodor passou um pano no fio de sua espada, que ainda estava bem afiada, a pôs na bainha nova que comprara no festival. Vestiu sua cota de malha. Pegou seu novo arco desencordoado e o pôs na aljava junto as suas flechas de carvalho. Leon estava arrumando sua cama, Oto juntando algumas roupas enquanto Nillah as dobrava e punha numa mochila de couro que encontrou pendurada num prego enferrujado na parede do quarto.

- Obrigado pela ajuda de vocês – Disse Theodor jogando a mochila por cima dos ombros. – Eu, sem dúvida, jamais encontrarei amigos melhores do que vocês.

- Eu concordo plenamente! – Respondeu Leon vaidosamente.

Os amigos riram.

- Então vamos! Preciso viajar!

Eles então deixaram o quarto e foram até a cozinha, onde estavam na mesa conversando Victória e seu pai, que se levantou ao ver Theodor.

- Pretendia ir embora sem se despedir de mim? – Perguntou seu avô com sua voz rouca e seca. – Talvez quando retorne já não me encontre mais aqui.

- Claro que não vovô, não diga uma coisa dessas novamente! – disse isso, e foi até lá para dar-lhe um abraço apertado.

Beijou o rosto de sua mãe e disse:

- Adeus mãe. Voltarei assim que puder!

- Faça isso meu querido.

Dizendo isso ele abriu a porta, olhou para trás novamente. Acenou para sua mãe e para seu avô, e deixou a casa, sem saber quando a veria novamente. Seguido por Leon, Oto e Nillah, ele olhou para o céu estrelado naquela noite de lua cheia. A brisa suave balançava seus cabelos como uma mão suave a acariciar-lhe as mechas douradas. Os quatro, juntos caminharam silenciosamente em direção a ponte. Passaram pela árvore que naquela manhã estava sendo atacada por Charlie. Victória e o avô de Theodor ficaram a observar-lo da janela de casa, vendo-o se afastar até se perder de vista na rua escura.

Algumas pessoas voltavam agora para casa trazendo os produtos que não foram vendidos de suas lojinhas durante o festival. Algumas tochas permaneciam acesas na praça do mercado. Ao se aproximarem o suficiente da ponte puderam ver o semblante do grande animal alado e seu cavaleiro. A águia, diferentemente de outrora, parecia calma e gentil, agora que estava sossegada, sem uma multidão lhe cercando. Com o bico coçava embaixo de uma das asas. Leon ficou impressionado com o tamanho da criatura que tinha o dobro da altura dele, e com sua beleza exótica.

- Vejo que retornou – disse o mensageiro. – Acredito que tenhas feito a escolha correta.

- Sim. Retornei e estou pronto para partir – respondeu Theodor.

- Ótimo! A propósito me chamo Ivor – E então virando-se para a águia ele disse algumas coisas. Imediatamente a águia parou de se coçar, abaixou a cabeça e o homem pulou para cima de suas costas até parar sobre uma sela de couro acolchoada. – Venha, monte.

Boquiaberto Leon soltou um palavrão, admirado com a cena. Theodor com um aperto no peito despediu-se dos três amigos, abraçou-os demoradamente. Virando-se para o homem sobre a águia perguntou:

- Como subo?

-Dê-me a mão. Pule para o centro de suas costas e então prenda-se com as fivelas de couro da sela.

Ele disse de forma que parecesse simples. Theodor então tentou. Pulou para as costas da ave, como faria para montar um cavalo, mas escorregou em suas penas lisas e foi parar atrás dela. Os amigos riram, e o homem também. Ele ficou vermelho.

- Segure-se firme na sela – disse Ivor estendendo o braço para baixo novamente.

Theodor tentou novamente. Pulou e sentou sobre a sela. O homem o segurou para que não escorregasse novamente. Passou um cinto de couro ao redor da cintura de Theodor e amarrou firme.

- Muito bem. Agora prenda suas pernas ali e ali – disse ele apontando para algumas outras fivelas ao lado do corpo da águia.

Theodor o fez.

- Agora prepare-se. Vamos voar!

Theodor não teve tempo de dizer um último adeus a seus amigos, as palavras foram engolidas junto com uma tragada de ar quando a águia com um comando de Ivor bateu as asas agressivamente e alçou vôo marcando a ponte com suas garras afiadas como adagas. Ele sentiu seu estômago ser comprimido e a pressão apertar seus tímpanos conforme a criatura tomava distância do chão pegando carona em uma rajada de ar quente.

Por um momento tudo que Theodor podia perceber era o bater de asas do animal no qual estava montado. Ele estava tonto e nauseado. Mas pouco tempo se passou até que ele estivesse normal. Foi então que se deu conta de onde estava. Ele olhou para baixo e se viu a vários metros do chão e a cada segundo, maior ficava esta distância. Seus amigos agora não passavam de pontinhos escuros. As fazendas e as casas iam ficando para trás, eram como um mosaico escuro com algumas pedras preciosas incrustadas, que seriam as tochas. O rio Dell que cortava a cidade agora era uma linha prateada que seguia para o sul.

Eles seguiram sobrevoando o rio, que mais ao sul desaguava em outro. O rio chama-se Rio Hullryath, em homenagem ao deus da vida e progenitor de todos os seres que habitam o mundo. É o maior rio conhecido. Ele nasce além das terras desérticas a leste e deságua no mar às margens da muralha norte de Orull. Tem cerca de treze quilômetros de largura e muito mais do que quatro mil de extensão. Além de diversos afluentes.

A noite estava fria, e gotas de água começavam a escorrer pela face de Theodor, logo seus cabelos estavam molhados e suas roupas também. Ivor jogou para ele um cobertor grosso que trazia consigo. Agradecendo mudamente ele se enrolou com o cobertor áspero e adormeceu, exausto com o dia.

~*~*~*~

Theodor despertou assustado e confuso. Olhou ao redor, um bando de pássaros coloridos voava perto dele, gritando e piando assustados para a águia, que ignorava o incômodo. Abaixo deles seguia correndo velozmente Rio Hullryath, margeado pelas últimas Colinas Verdejantes. O sol brilhava forte por detrás deles e queimava a nuca de Theodor, enquanto secava suas roupas molhadas pela garoa da noite anterior.

A águia se deslocava numa velocidade incrível levando em conta o peso que ela carregava em suas costas. De vez em quando ela parava de bater as suas asas enormes e planava graciosamente sobre a floresta que ia gradativamente dando lugar a uma planície extensa.

Theodor então tirou o cobertor de suas costas, foi quando Ivor olhou para trás:

- Ah! Você acordou.

- Sim, bom dia – respondeu ele acanhadamente.

- Tome, coma isso – Ivor pegou algo em sua sacola e entregou a Theodor. – Espero que tenha dormido bem.

Theodor pegou o pequeno embrulho quadrado de pano e o abriu. Dentro havia uma espécie de pão recheado com queijo. Agradecendo a, se é que se pode chamar dessa forma, hospitalidade do homem, começou a comer. Estava delicioso, o pão era macio e muito saboroso, na verdade o recheio não era apenas de queijo. Tempero e alguns pedaços de carne também compunham o interior do pão. Theodor devorou seu desjejum satisfeito.

- Você sabe o motivo de minha intimação? – Perguntou Theodor sem esperar nenhum retorno afirmativo.

- Perdão, mas eu o desconheço – respondeu Ivor. – Mas posso adiantar-te que vários de meus companheiros receberam a mesma tarefa: Buscar algum guerreiro em alguma cidade distante. Inclusive North-Rowüll.

- Onde fica esse lugar?

- Você realmente não sabe?

- Eu sei que é uma cidade fria, e que fica ao norte.

- Então sabes quase tanto quanto eu. Não há muito contato daqueles homens com os nossos. Eles vêm de vez em quando para fazer comércio. Vendem carne, couro curtido, animais, tecidos e algumas outras coisas. São homens bastante exóticos, aficionados por barbas e tranças. Suas mulheres costumam usar tranças em seus cabelos, e os homens... em suas barbas – Ivor disse com um tom de ironia fazendo com que Theodor risse. – Porém são conhecidos pela sua ótima desenvoltura em combate, e seus navios muito bem projetados, que alcançam velocidades surpreendentes, e também são muito bons para combates em alto mar.

- North-Rowüll não faz parte do reino de Orull, faz?

- Ah não, não...

- Pois então o que estariam os guerreiros de Orull, fazendo por lá?

- Não fazia. Até Hector conquistá-la – continuou.

Theodor arregalou os olhos, mas Ivor não percebeu, e continuou:

- Sua última guerra nos prestou o controle sobre as terras geladas do norte, e um grande exército está instalado lá, mantendo o controle sobre a situação.

- O império Orulliano agora estende-se de norte a sul... – murmurou Theodor mirando o horizonte.

~*~*~*~

Eles conversaram durante muito tempo, sobre qualquer assunto que pudesse preencher o tempo de viagem que os separava de seu destino. Theodor olhava ao redor a todo instante, reparava como era extenso o mundo ao redor, jamais pensara em transpor um espaço tão grande em tão pouco tempo, e na altura que estava ele podia ver ainda mais além, o que era no mínimo magnífico.

Poucas horas depois assomaram-se ao Rio Hullryath litros e mais litros de água que desembocavam de um afluente quase tão largo quanto ele próprio. Era o chamado Rio Ki-Kay, este vinha do norte. Ele brotava de uma grande, na verdade de uma enorme montanha no coração das Florestas Azuis. A violência com que as águas se encontravam era tanta que Theodor podia ouvir o chiado que elas emitiam àquela distância.

Muitas horas depois, enquanto o sol lançava manchas rosadas e douradas nas nuvens robustas que pairavam no céu mais ao leste, flutuando, estáticas, como uma pintura emoldurada na parede do infinito. As colinas já tinham ficado muitos quilômetros para trás e agora o que viam era uma extensa planície pontilhada por alguns poucos arbustos e árvores de pequeno porte. 

- Olhe – apontou Ivor para o horizonte, onde uma cadeia montanhosa se erguia para o sudoeste, recortando a paisagem com seus picos agudos. – Aquela é “A Cordilheira Sangrenta”.

- Parece sombrio... – disse Theodor sentindo um leve tremor percorrer a espinha.

- De fato não é um lugar muito explorado, e existem muitas lendas de criaturas misteriosas que habitam aquela região traiçoeira. Aquelas montanhas são repletas de desfiladeiros, cavernas, e costumam sofrer muitos deslizamentos que às vezes derrubam alguns dos túneis das minas de Orull. Mas o nome se dá por causa do vulcão que de tempos em tempos cospe fogo de sua enorme boca.

- Eu me lembro de tê-las visitado durante meu treinamento em Orull, mas não fui muito afundo. Passamos por uma pequena estrada entre as pedras nuas das montanhas para chegar até Housen certa vez.

- Sim. É o único motivo para se passar por lá, chegar até o reino vizinho de Housen, a estrada é usada apenas por mercadores e soldados, contudo, os que têm pressa, pois muitos preferem dar a volta nas montanhas.

Theodor olhava ao redor apreciando o sol que ia se afundando no oceano, ainda fora de seu campo de visão.

- A viagem não é tão longa, e é tranqüila – tranqüilizou-o Ivor – mais duas noites de viagem... e chegaremos ao entardecer do segundo dia.

- Sua ave nunca se cansa? – Perguntou Theodor, de certa forma preocupado.

- Minha ave – disse o homem, com um tom, talvez, agressivo – se chama Ptah. – E repentinamente, adotando um tom muito mais cordial, como antes, continuou. – Claro que se cansa, mas até que isso aconteça estendem-se dias, esses pássaros são proeminentes da Cordilheira Sangrenta, onde não há muito alimento para elas e então são obrigados a passar dias a fio buscando alguma presa de seu agrado.

- Compreendo – ele cogitou desculpar-se pelo possível insulto, mas preferiu deixar pra lá.

A noite furtivamente estendeu seu manto negro sobre as cabeças das três criaturas que voavam em silêncio naquele céu frio. Junto dela veio a lua minguante, com seu rebanho de estrelas que piscavam graciosamente para Theodor. 

- Segure-se – alertou Ivor. – Vamos descer um pouco, para nos proteger do frio.

Theodor certificou-se de que as fivelas em suas pernas estavam bem firmes e deitou-se para trás nas penas macias da ave, contemplando os pontos prateados que eram as estrelas, deixando-se embalar pelo vai e vem das asas lutando contra o que ele não sabia o que... Porque os pássaros voam e nós não?... Um vento frio soprava contra eles, ele se enrolou no cobertor grosso de cânhamo e adormeceu.

- O tempo vai virar – resmungou Ivor, mais pra si do que pra Theodor.

~*~*~*~

O dia seguinte amanheceu frio e nebuloso, uma mudança repentina do clima... Pequenos cristais de gelo se formavam nas gotas de, ou chuva ou orvalho, que se seguravam com força aos cabelos e a barba desgrenhados de Theodor.

Percebeu, ao olhar em volta, que estavam circundando a Cordilheira Sangrenta. A névoa cobria agora os picos das montanhas e uma fina camada revestia o solo abaixo deles, como se fosse algodão recém colhido do pé, branca volumosa e densa, mas que ao toque se mostrava suave e líquida.

O céu estava pálido como um cadáver, e nuvens cinzentas se moviam rapidamente, como ordenava o vento, que as empurrava impiedosamente, como escravas revoltas. Seus cabelos chicoteavam seus olhos e suas orelhas e um som grave reverberava em seus ouvidos como se fosse um trovão tocando uma sinfonia medonha num compasso ritmado... sem parar.

- Bom dia Theodor, hoje nos será um dia difícil, mas ao menos sabemos que será o último – gritava Ivor virando a cabeça para trás – Amanhã chegaremos! Uma tempestade daquelas está se formando, o que não é nada nada bom!

- Não há como nos protegermos da chuva? – Gritou ele de volta.

- Claro que há, e é exatamente isso que eu e Ptah estamos providenciando... – ele olhou para frente rapidamente para verificar o curso e se voltou para Theodor novamente. – Vamos passar por entre as montanhas, as nuvens estão pesadas e as montanhas estão acima delas, estaremos protegidos satisfatoriamente! Mas o frio será terrível!

Passou-se apenas alguns minutos até que Ivor gritasse novamente:

- Segure-se firme!

E então puxou o que seriam as rédeas de Ptah, um solavanco forte arrastou-os para o lado quando a ave fez uma curva brusca para o meio das montanhas. Uma pedra passou raspando pela cabeça de Theodor, que se encolheu assustado. 

O clima lá era diferente, no céu podia-se ver o azul claro que àquela hora da manhã era praxe exibir.

Eles voavam perto dos topos das montanhas, o que gerava certo desconforto por conta da pressão e do ar rarefeito. A paisagem era composta por largos pilares de pedra nua e cinzenta que se afilavam nas pontas. Era como uma das camas de prego que certa vez Theodor assistiu um homem de turbante se deitar sobre. Entre algumas fendas nas pedras brotavam pequenas plantas que davam vida e cor ao ambiente inóspito.

- Aqui estaremos seguros – disse Ivor.

Onde estavam, o único sinal de que do lado de fora caía um temporal era o assovio lamurioso do vento que ecoava nas rochas das montanhas e o chiado inexorável da chuva.

Theodor sentia certa tontura e uma exaustão repentina e inexplicável. Horas se passaram então sem pronunciar uma única palavra. Passaram por eles uma infinidade de montanhas, cavernas e grutas, pedras soltas e algumas poucas árvores, cactos e plantas rasteiras. A fauna à primeira vista era quase nula, mas era possível ouvir-se ao longe, gritos e berros de pássaros em meio à chuva e o pranto do vento.
A respiração descompassada de Theodor acentuava sua forte dor de cabeça. Pegou seu cantil e tomou alguns goles de água.

Voaram por cerca de duas horas até que as montanhas se tornavam maiores e mais espaçadas, possibilitando que eles voassem mais baixo. O que Theodor mais queria! A pressão aliviou seu aperto, e o ar voltou a circular normalmente em suas narinas. Aos poucos a dor de cabeça foi se esvaindo, deixando-o em paz. E ele dava vivas por isso. A tempestade continuava, e aos poucos foi tomando espaço entre as montanhas. Filetes de água escorriam pelas rochas, desaparecendo entre uma montanha e outra.

Tempos depois Theodor pôde ver em uma abertura em forma de “V” uma enorme teia de aranha. Mas não uma simples teia, as cordas tinham a grossura de seu pulso. Se isso for mesmo de uma aranha, seu prato favorito certamente não são insetos, pensou ele. Mas seja lá qual for a criatura que construíra aquela ostentosa obra natural, não estava lá para se apresentar, ele agradeceu por isso.

A paisagem ficava sempre inalterável. O tédio tomou conta de Theodor. Ele tirou o seu novo arco da aljava, o encordoou e ficou admirando a beleza da peça. Passava os dedos por toda a sua extensão, sentindo os entalhes na madeira.

- Belo arco você traz aí – comentou Ivor.

- Ganhei anteontem num jogo durante o festival da minha cidade, num torne...

Theodor parou e tampou os ouvido quando Ptah gritou. Um grito de alerta. Tão alto que algumas rochas despencaram do topo das montanhas e despencaram encosta abaixo, rolando.

- Oh, céus... – suspirou Ivor, apavorado.

- O que foi? – perguntou Theodor alerta, levando a mão instintivamente a uma das flechas em sua cintura.

Com o braço trêmulo Ivor apontou para uma laje a cerca de trinta metros de altura. Lá, voavam cerca de quinze criaturas, que a esta distância não passavam de urubus.

- Gaviões-Gancho... – proferiu Ivor entre dentes, como se fosse um nome proibido... uma maldição.

As criaturas devolveram o grito, em uníssono. O grito se assemelhava mais a um trovão. Os quinze pássaros se reuniram formando uma nuvem negra e mergulharam em investida contra Ptah e seus cavaleiros.

- Gwey! – Gritou Ivor para sua montaria.

A Águia Gigante fechou as asas e mergulhou mais fundo nas montanhas, ganhando velocidade. A luminosidade não era tão boa, pois as montanhas se cobriam e faziam sombras em suas bases. Theodor virou a cabeça para trás e viu um vulto se aproximando deles em alta velocidade. Os Gaviões-Gancho os alcançariam em poucos segundos. Ptah fez uma curva brusca para a esquerda ainda sem abrir as asas, acompanhando a encosta da montanha mais próxima.

Os oponentes estavam já a dez metros. Banhados pelo Sol, Theodor pôde ver como eram assustadoras aquelas criaturas. Elas possuíam corpos sinuosos, semelhantes a serpentes, com pescoços compridos e caudas longas. Um par de asas projetava-se das laterais de seus troncos esqueléticos. A maior parte de seus corpos eram revestidos por uma grossa armadura de escamas negras iridescentes, com tufos de penas alaranjadas em seus pescoços e caudas. Suas cabeças finas terminavam em longos bicos curvos e serrilhados, eram brilhantes como aço, e logo Theodor descobriria se eram também tão letais quanto. Dois pares de olhos malévolos estavam incrustados em suas faces ossudas, um acima e outro abaixo do bico.

Ptah os levava cada vez mais fundo nas montanhas, tentando fugir de seus perseguidores. Mas estes eram incansáveis.

Passando por um arco rochoso Ptah forçou os oponentes a se dividirem. Três continuaram a perseguição, os outros tiveram que dar a volta no pequeno túnel. Já estavam a cinco metros dela. Theodor aproveitou a distância, armou uma flecha em seu arco, puxou-o com força e disparou. A flecha cortou as sombras e fincou-se dentro da boca de uma das criaturas que gritavam, fazendo com que ela perdesse o rumo e batesse contra a parede dando cambalhotas e esfolando a pele contra a rocha áspera.

Por um buraco no teto Theodor pôde ver o restante das aves sobrevoando-os. Ivor guiava Ptah com notável habilidade e os conduzia por entre as pedras, impedindo que se chocassem contra alguma delas.

- Faça-a subir no próximo buraco, vamos deixá-las para trás! – Gritou Theodor.

- Vou tentar! – Foi a resposta.

As duas restantes que os seguiam de perto alcançaram Ptah antes que Theodor pudesse atirar mais uma flecha. Deslizaram para tentar dilacerar suas vísceras, mas Ivor puxou as rédeas para o lado e elas passaram direto por cima deles, por pouco deixando de atingir Theodor nas costelas. Ele então com a flecha que segurava na mão perfurou o flanco de uma das criaturas enquanto ela passava por eles. Ela guinchou arreganhando seu bico torto. Pondo a flecha no arco disparou novamente. Mirou o peito desprotegido do gavião ainda são, atingiu-o em cheio no ventre côncavo perfurando-lhe o estômago. Morto ele caiu batendo no chão e girando sobre si mesmo em ângulos confusos e cores que se alternavam entre laranja e preto, passando por baixo da barriga de Ptah.

Enquanto a criatura remanescente fazia uma manobra dobrando seu corpo num “S” para tentar novamente investir contra seus inimigos, um buraco na lateral do túnel deu-lhes passagem para o céu aberto. Com dificuldade Ptah passou pela abertura pequena demais para suas asas enormes. Emergiram os três das profundezas daquele túnel. Ptah bateu com força suas asas tentando ganhar altitude. Outro daqueles gritos relampejantes encheu o ar quando a ave ferida saiu do túnel serpenteando, cortando o céu atrás de sua presa, enfurecida e ensangüentada, convocando aos berros o restante de seu bando.

Ptah os levava em espiral para o topo da montanha que aos poucos era banhada pelo Sol. Mais abaixo estavam as criaturas – coléricas com a morte de duas de suas companheiras.

- Aves malditas! – Rosnou Theodor tocando a bochecha banhada em sangue devido ao corte em seu supercílio direito. Machucara ao bater com a cabeça no buraco do túnel, mas não havia notado até então.

Theodor disparou mais cinco flechas consecutivas contra as criaturas abaixo dele. Uma das flechas acertou bem no meio da testa de um dos gaviões que despencou morto formando um vórtice, adentrando as trevas que se formavam no sopé das montanhas. Outra acertou na asa de um deles e fincou-se em suas escamas negras que cobriam-lhe o membro. A ave torceu seu pescoço e arrancou a flecha que a molestava quebrando-a como um graveto com seu bico potente. As outras flechas foram desviadas, uma das aves voou em espiral em torno de uma das flechas, para no final chicoteá-la com a calda olhando fixamente dentro dos olhos de seu agressor. Theodor estremeceu com aquele olhar.

- Depressa! – Gritou

- Ptah está dando seu máximo, somos muito pesados! Normalmente ela fugiria fácil...

Theodor olhou ao redor em busca de algo que os pudesse ajudar em sua fuga. E então a imagem da enorme teia que havia visto a tempos atrás perpassou-lhe a mente. 

- Tenho um plano!

- Ótimo – grunhiu Ivor – apenas me diga o que fazer!

O coração de Theodor retumbava agitado. Diversos espasmos percorriam-lhe os músculos. É muito diferente combater outros guerreiros...

- No caminho para cá avistei uma teia gigantesca! Se conseguirmos levá-los até lá poderemos nos safar!

- Aponte a direção!

- Apenas volte o caminho que fizemos até aqui, desde que entramos nas montanhas.

Um gavião tentou morder o rosto de Theodor com seu bico afiadíssimo, mas seus reflexos foram demasiado lentos e acabou por levar uma bordoada entre os olhos com o arco de Theodor, ao mesmo tempo em que este se virava para evitar o golpe. A ave caiu morta. Penas se desprenderam de seu pescoço magro e planaram no ar agitado. Theodor perdera a atenção nas criaturas que agora os tinham alcançado e investiam por todos os lados com suas garras cintilantes e seus bicos oblíquos. Ao tentar se defender de uma das criaturas Theodor teve seu braço esquerdo cortado pelas garras de uma delas, do ombro ao pulso, rapidamente o sangue manchou suas vestes, as de Ivor e também as penas de Ptah. Centelhas vermelhas e laranjas dançaram em frente aos seus olhos, junto a milhares de luzes que piscavam... seu corpo ameaçou desmaiar. Chegou a fechar os olhos...

- Theodor! Não! – Gritou Ivor.

Voltando a si, Theodor se esquivou a tempo de evitar um ataque com as garras de um outro Gavião-Gancho. Reconheceu o lugar a volta e gritou para Ivor:

- Por ali!

- Certo...

Theodor desembainhou sua espada prendendo o arco com as pernas e rechaçou as aves que continuavam a investir contra eles. Nisso, Ptah conseguiu colaborar. Dando um looping para trás na hora em que quatro gaviões atacaram, fazendo com que dois deles quase se chocassem um contra o outro tendo de se esquivar com acrobacias complexas, usando as garras Ptah dilacerou as asas de um deles e Theodor devolveu o corte em seu braço nas costas de uma das criaturas.

Eles eram cerca de duas vezes menores que Ptah, mas três vezes mais ágeis. Atacando com muito mais velocidade, enquanto a águia sobrecarregada lutava para se esquivar e se distanciar dos seus agressores. Um dos Gaviões-Gancho emparelhou com ela e rasgou os músculos sob sua asa, mas teve sua cabeça degolada pela lâmina impiedosa de Theodor. A cabeça inerte ainda presa na carne de Ptah soltou-se ao bater de suas asas. Ela gemeu baixinho, o sangue quente escorria pelo seu peito e gotejava.

- Estamos quase lá – disse Theodor tonteando. O sangue continuava a correr para fora de seu corpo.

- Você está pálido! – espantou-se Ivor.

- Não se preocupe... – mais um gavião investiu contra ele tentando arrancar sua cabeça do resto do seu corpo, mas Theodor revidou atingindo a criatura onde deveria estar o coração, entre as costelas, e matando-a. O sangue verde-metálico espirrou no rosto de Theodor o misturou-se ao seu próprio –... comigo! Preocupe-se com sua ave.

Agora que era possível contar, ele contou oito criaturas remanescentes. Viu que estavam perto da teia, e tinham de acabar logo com aquelas criaturas antes que ele morresse por falta de sangue. Ou Ptah fosse abatida.

- É ali... Vire ali!

Ivor obedeceu, e puxou as rédeas de sua montaria fazendo com que ela fizesse uma curva brusca e virasse para dentro da fenda. Os gaviões a seguiam de perto.

- Agora! – Gritou Theodor – Suba!

A alguns centímetros da teia colossal que cobria toda a extensão daquela fenda Ptah deu uma guinada para cima, espirrando sangue contra os grossos fios de teia, com um solavanco que quase derrubou Theodor da sela, se não fosse pelas fivelas que o mantinham preso no lugar. Os gaviões desprevenidos, e no ímpeto do ataque, convergiram contra a teia e lá ficaram grudados. Debateram-se aterrorizados e gritaram, piavam alto e se contorciam de pânico, cada vez mais presos à teia. Cada esforço extra por parte deles era um a menos que seu predador teria que fazer.

Ivor e Ptah comemoraram com um urro em harmonia, um pio agudo e ressonante. Theodor apenas sorriu tonto. Descendo, os três retomaram o rumo. Os olhos de Theodor piscavam demoradamente, despedaçando sua visão em cenas entrecortadas. E antes de perder a teia de vista teve certeza de ter discernido ao longe uma aranha enorme e cinzenta, com grandes bolsas amarelas sob o ventre, correndo velozmente, dependurada por um único fio de teia indo inspecionar seu banquete, enquanto ainda estava fresco. E foi a última coisa que viu antes de embainhar sua espada e desabar nas costas de Ivor, ainda segurando seu punho de madeira...

~*~*~*~

Theodor acordou titubeante, com a voz de Ivor invadindo seus desvarios. Ele conversava com Ptah numa língua estranha, pronunciada demoradamente, aproximando-se de um sonoro sopro.

- Azhen wey waza tzeray, heas flain wetrozius wen intraz…

Ao que a águia respondeu com um pio longo e ameaçador. Foi então que Theodor se preocupou a olhar ao redor para descobrir onde estava. Viu então que ainda era de tarde, pois o sol queimava-lhe o rosto exposto. Estava montado sobre Ptah atrás de Ivor, amarrado na sela para que não caísse. Seu braço cortado fora enfaixado do ombro até sua mão com uma atadura branca manchada de sangue, bastante apertada por sinal.

À sua esquerda estavam as montanhas que compunham a Cordilheira Sangrenta, abaixo deles uma floresta virgem brilhava como um mar de esmeraldas. As copas das árvores encharcadas da água da chuva refletiam a luz do sol do meio-dia como se tivessem sido bordadas com diversas pedras preciosas, enquanto o vento açulava suas folhas dando movimento e vida as suas copas. Um arco-íris se formava sobre a floresta cortando o céu num meio círculo poli cromático, tingindo com as suas sete cores o céu límpido daquela tarde.

Theodor tentou pôr-se ereto sobre a sela, estalando o pescoço ao se levantar. Uma sombra negra anuviou sua visão e o deu a impressão de estar em queda livre. A vertigem passou após alguns segundo quando Ivor disse:

- Ahá, acordou então! – disse contente, virando o corpo para trás para poder observar Theodor.

Este resmungou algo ininteligível.

- Deve saber que este é nosso último dia de viagem. Perdestes muito sangue, cuidei de você e de Ptah e em algumas horas chegaremos a Orull. Dormistes por quase um dia inteiro! Espero que esteja melhor.

- Minha cabeça está latejando, tal como meu braço. Mas vou sobreviver, já sofri ferimentos piores.

- Vou voar baixo para respirar um ar fresco e diminuir a pressão...

- Certo.

- Fará com que se sinta melhor.

Theodor teria agradecido, mas preferiu não prolongar a conversa. Ao comando de Ivor, Ptah parou de bater as asas e deixou-se levar por uma corrente de ar que se deslocava sob ela estufando suas asas. As penas de sua cauda estalavam, chicoteando ao sabor do vento, chocando-se umas com as outras. Aos poucos ela foi se afastando das montanhas, e se pondo sobre as árvores da floresta. O dia estava bem quente, diferentemente do anterior, a chuva enlameou todo o solo, e deu brilho as plantas, deixando o dia mais claro e agradável.

Um rio cortava a floresta, correndo para o oeste, em direção ao mar, e abria espaço entre as árvores. De modo que Ptah pudesse sobrevoá-lo bem de perto, quase tocando a água com suas garras pontiagudas. Criaturas selvagens corriam fazendo estardalhaço ao vê-la se aproximar. Eles estavam agora na altura das árvores, Theodor começou a lembrar da região, vendo dessa perspectiva era sem dúvida bem mais fácil.

As plantas que margeavam o rio eram grossas e tinham suas raízes suspensas, alguns animais se escondiam debaixo delas, fazendo tocas temporárias e alimentando seus filhotes. Macacos saltavam de galho em galho com seus braços e rabos ágeis, seguindo Ptah a certa distância gritando e gesticulando em sua direção com caras irritadas. Pardais e sabiás gritavam em alerta, deixavam seus ninhos e voavam para árvores mais distantes quando ela passava.

Mais a frente, no rio, seguia uma canoa com dois homens. Eles estavam sem camisa exibindo a pele morena de sol, chapéus cobriam-lhes as cabeças e em suas mãos seguravam varas de pesca. Seus peitos tinham sido pintados com tatuagens vermelho-alaranjadas tribais. Olharam assustados e admirados para Ptah quando ela passou arrancando o chapéu de um deles com o vento de suas asas. Em seguida passaram por uma clareira aberta em uma das margens do rio. Algumas casas de madeira haviam sido construídas ali, a alguns metros da água, longe da área de alagamento. Crianças brincavam de pega-pega sobre as folhas secas que cobriam o solo. Algumas mulheres quase nuas, usavam apenas saias, nada que cobrisse suas mamas. Elas pararam de cuidar de suas hortas ou de seus varais para olharem para Ptah. Algumas carregavam bebês nas costas, presos em uma grande faixa de pano amarrado sobre os ombros. As crianças, essas completamente nuas cobertas apenas por tatuagens menores, semelhantes às dos adultos na canoa, riam, gritavam e apontavam também em sua direção.

Theodor olhava para as crianças e mulheres da pequena aldeia com tanta admiração quanto elas os olhavam. Via sua vida passar diante de seus olhos, em flashes verde-folha. A natureza se espelhava naqueles rostos, naqueles olhos verde-mel, naqueles cabelos trançados com cipós e galhos, naqueles arcos e flechas empunhados por mãos que não desejavam sangue, apenas algo para comer.

A aldeia foi deixada para trás rapidamente enquanto Ptah se erguia novamente no céu. O sol se alongava para o oeste em direção ao horizonte .E hoje, mesmo de dia já se podia ver a lua no céu, branca como as nuvens, que aos poucos foram tomando a coloração arroxeada do sol poente. Enquanto no horizonte por trás das árvores já se podia avistar a enorme área de plantio que cobria todo o leste da muralha de Orull, e ao mar que agora já estava nítido diante de seus olhos, há apenas alguns minutos. O rio que seguiam dobrou para a direita e era ele que limitava a área cultivável, comandada por alguns poucos fazendeiros. As muralhas da grande Orull se erguiam imponentes em direção ao céu.

Theodor olhou ansioso em direção à cidade, seu corpo implorava por terra firme e boa comida, e em Orull com certeza conseguiria ambos.

- Aqui estamos nós. Zazuz wasuswe Ptah – ao que a águia respondeu com um incompreensível, ao menos para Theodor, conjunto de pios e zumbidos guturais.

- Ivor...

- Sim?

- Que língua, se é que se pode chamar assim, é essa com a qual se comunica com Ptah?

- Ah claro, nós falamos a língua dos seres alados, e do vento... Auran – respondeu com simplicidade.

10 de setembro de 2013

RPG - Background de um personagem para um mundo Medieval Fantástico

Sâmyla, a flor do deserto

Sou Sâmyla, nome um tanto conhecido por todos os povos que dependem de água no deserto. Sim, minha mãe deu-me o nome de uma suculenta e rósea flor de cacto que desabrocha no auge do verão. Não sei que significado esse nome possuía para ela, se é que possuía algum, por isso posso apenas imaginar possíveis justificativas para isso. Mas certamente sei o significado deste nome para mim. Minha mãe me chamava a maior parte do tempo de Sam, ou Samy. Tenho saudades da minha mãe, e nem tantas memórias dela. Fico imaginando como ela era antes de eu nascer, qual era sua história mais antiga, fico curiosa à respeito dos mistérios que ela guardava consigo.

Nunca cheguei a conhecer a grande cidade de Daerur, embora seja de lá que eu venha. Minha mãe, fugindo por minha causa, escondeu-se comigo ainda na barriga numa caravana de comerciantes conhecidos dela, apenas para me parir a algumas horas da cidade, num casebre de um fazendeiro que aceitou abrigá-la por aquela noite à pedido dos tais comerciantes, para que ninguém soubesse de meu nascimento prematuro. Me contavam que eu tinha nascido pequenina como um filhotinho de vira-lata, todos achavam que eu não fosse aguentar. Hoje em dia ninguém mais me conhece ou reconhece para ficar me lembrando destas coisas. Embora não seja necessário, tenho as lembranças destas pessoas muito claras na minha mente.

Foi nesta caravana que vivemos, minha mãe e eu, por um bom tempo. Viajávamos com frequência, indo de uma cidade para outra, conhecíamos gente nova e encontrávamos conhecidos nossos, vivandeiros, andarilhos, caçadores, trovadores, latoeiros, ciganos... uma infinidade de figuras errantes como nós. Minha mãe ganhava dinheiro lendo mãos e adivinhando o futuro das pessoas, ajudando os comerciantes nas vendas deles, comercializando ela mesma algumas coisas que fazia: perfumes, por exemplo, poções do amor, remédios... ela costurava, cantava, dançava...

Eu levava jeito para isso também.

Quando fiquei mais velha eu deixei de ficar sentada na carroça olhando tudo e todos enquanto brincava com bonecas que minha mãe costurava para mim e passei a costurá-las eu mesma. Comecei a ajudar na confecção dos panos, das rendas, dos perfumes. Comprava os frascos, entregava pedidos, corria para lá e para cá sujando meu vestido de poeira e ajudando a minha mãe a ganhar nosso sustento. Ela estava pensando em voltar para Daerur e por isso estávamos juntando algum dinheiro para podermos viajar até lá novamente e comprarmos alguns animais e terras. Talvez ainda tivéssemos que nos submeter a algum homem mais rico, ideia que minha mãe relutava em considerar.

Eu não conheci muito do passado dela, porém ela me falava muito do meu futuro, dizia que eu seria uma menina linda e talentosa, que eu poderia ser o que eu quisesse, que eu deveria aprender agora pois quando ela morresse eu deveria ser capaz de me virar sem ela. Ela dizia que eu era a flor mais bonita de todo o deserto e de todos os jardins, e que eu devia aprender com as flores a importância das fragrâncias e como usá-las... E todas as demais coisas que uma mãe diz para a filha com a certeza de que nada é eterno, enquanto a filha tem absoluta certeza de que a alegria é inexorável e nada nunca poderia dar errado. Mas a vida insiste em nos fazer crescer, e sem perguntar nossa opinião nos força a dar um gigantesco passo à frente pondo à prova nossas emoções quando menos esperamos. Pode parecer clichê, mas é verdade.

À caminho de Daerur, atravessávamos o deserto que muitos chamam de Deserto da Morte, afinal não é nada mais do que uma planície árida e quente, onde toda a vida que há rasteja ou sob, ou sobre a areia. O ar tremula ao seu redor como que algo vivo e constantemente em movimento, deslocando para lá e para cá toda a existência, a todo momento. Frequentemente o deserto lhe prega peças, e faz com que acredite que há água onde não há vida, e que haverá vida onde tudo jaz inerte e estéril. Contudo minha caravana e eu já sabíamos, a esta altura, como atravessar o deserto de um canto a outro. Cobertos por tecidos leves, nos protegíamos da poeira, montados em Cumohs evitávamos a fadiga, e viajando no auge do verão colhíamos todas as Sâmylas do deserto, mantendo-nos hidratados.

Foi durante esta viagem que minha vida mudou. Numa noite fria e escura acampávamos ao redor de grandes fogueiras, onde tínhamos assado algumas carnes que tinham conseguido caçar naquela tarde, e, enquanto dormíamos, caíram sobre nós diversos assaltantes. Eles se moviam rápida e furtivamente pelo acampamento chutando as barracas e matando os homens que nos acompanhavam e protegiam. Eu acordei com o barulho e estava sozinha numa barraca ouvindo a confusão do lado de fora. Minha mãe, como de costume, devia estar realizando alguma outra tarefa, mas ao por minha cabeça para fora das abas grossas da barraca vi logo seu corpo estendido no chão e corri em direção a ela, com as lágrimas correndo pela minha face, tal qual escorrem do orifício que abrimos para tirar a água da Sâmyla.

O sangue empapava suas roupas e a areia ao redor, uma faca jazia próxima de sua mão, e eu deitei sobre seu peito, gritando de pavor e saudade, uma saudade louca que você apenas sente quando sabe que perdeu alguém para sempre, um sentimento ácido, explosivo e incontrolável. Os atacantes ao meu redor prosseguiam cortando, matando e pilhando nossa caravana. Poucos tiveram tempo para resistir, e os que fizeram logo pereceram. Alguns se renderam e foram presos e amarrados aos Cumohs que os forasteiros montavam. Estes pilhavam e saqueavam as barracas, arrancavam jóias dos dedos, pescoços e braços dos mortos...

- Sam... - Eu olhei de súbito para minha mãe ao ouvir meu nome sussurrado. - Seja forte. - Ela disse. - Eu te amo. - Ela tentou sorrir. E morreu.

Foi então que veio a dor de verdade. Havia sentido a morte dela, restituído a esperança e perdido tudo de uma vez, num retumbar surdo de seu coração que bateu junto com o meu numa nota lúgubre de seu derradeiro fim. Não pude reprimir o grito agudo e sonoro que escapou dolorosamente dos meus lábios, e todos os que me circundavam que pareciam me ignorar olharam simultaneamente para mim, olhos arregalados e corações saltados. Os animais de montaria se assustaram e os que não estavam presos correram, e logo também o fez o restante dos homens. Deixando-me sozinha por um instante com a minha mãe e a minha dor. O vento uivou comigo e levantou uma nuvem densa de areia que apagou as fogueiras, cobriu as barracas caídas e os corpos mortos.

Cobriu a mim e à minha alegria, alegria de menina, alegria ingênua de criança lavada pelo sangue materno, pelo sangue terno. Pelo vento gelado e pelo cheiro de morte.

Eu tinha apenas oito anos.

Sentindo a minha boca seca eu acordei com um som e um cheiro que não eram comuns. Tentei abrir os olhos e o sol os queimou. Tentando levantar, meus braços fraquejaram. A areia queimava e minha pele ardia... Vislumbrei um movimento, e ouvi vozes, mas pensei que fossem as peças do deserto tentando me enganar. Mas não eram. Quando tentei falar senti meus lábios se descolarem dolorosamente rasgando a pele que os mantivera unidos num silêncio sorumbático. O gosto de sangue inundou meu paladar imediatamente e eu choraminguei. Lembro de ter choramingado.

Vi por detrás das pálpebras uma sombra se avolumando sobre mim e o cheiro ficando mais forte. Abri os olhos e vi um garoto moreno, um pouco mais velho que eu.

- Você está viva? - Perguntou ele com a voz por mudar, por detrás dos panos que cobriam seu rosto deixando apenas os vívidos olhos azuis à mostra.

- Sim - murmurei, receosa.

- MESTRE!!  - Ele gritou em alguma direção - Acho que encontramos ela!

Ele abaixou-se para me ajudar a levantar-me e perguntou-me meu nome, quando eu disse ele deve ter pensado que eu estava com sede, e estava mesmo, por que tirou de uma das bolsinhas que levava consigo uma Sâmyla, furou a casca com um dedo e verteu o líquido quase sem gosto nos meus lábios. Seu toque era calmo, ponderado e suave, não era o toque de um garoto de doze anos, como era.

Logo, um homem mais velho e de barba cumprida e branca curvou-se sobre mim apoiando-se num cajado. Examinou-me com os olhos profundos e sérios, de um marrom cor de lama que oculta segredos perigosos. Ele me assustou. E com medo eu me afastei dos dois, me dando conta de que estava deixando dois estranhos no meio do deserto tocarem em mim e me alimentarem... O menino tentou me segurar, mas o velho segurou o menino, e eu escorreguei em algo úmido e pegajoso que era o corpo da minha mãe, logo atrás de mim. Apavorada eu comecei a me levantar para correr, chorando, mas o garoto me segurou e me abraçou.

Eu estava pronta para me defender, mas o cheiro dele, o abraço dele me acalmou. E eu deixei-me cair novamente, de joelhos, chorando como uma criança, que eu era. Eles vinham montados em Cumohs esguios, cada um com um barril pendurado no pescoço. E eles me encaravam como que indagando por que eu chorava. O velho e o garoto me levaram dali. Sem trocar palavra decidiram o caminho, e, montada no mesmo animal que o menino, viajei abraçada nele durante dois dias. Eles me alimentaram, me deixaram pensar. E quando eu comecei a fazer as perguntas o menino pareceu aliviado, por que começou a perguntar um monte de coisas também, algumas das quais eu não fazia idéia do significado.

Paramos em uma caverna e descansamos lá por um tempo. O velho, cujo nome eu já sabia ser Qirin, saiu deixando eu e o garoto à sós, mas não antes de ter trocado algumas palavras sussurradas com ele. Ele tirou a máscara que o protegia do sol revelando seus bravios cabelos negros, moldura de um rosto alongado e forte, coberto por manchinhas claras por cima do nariz e bochechas.

- Meu nome é Varyon! - Declarou altivo de cima de seus cento e cinquenta centímetros. - Filho do sol e do mar... e a senhora...? - Perguntou, sentando-se, sem deixar de me encarar radiante com seus olhos que não denotavam nada além de uma alegria contida.

- Senhora? - Repeti, reconhecendo meu baixo nascimento. - Sou Sâmyla.

- Ah, como a flor! - Eu apenas assenti.

Conversamos sobre coisas, ele me contou que era um andarilho, como seu mestre, mas não pôde me dizer quem o mestre era, ou o que os dois faziam, ou o que aprendia, ou qualquer coisa diferente do que eu já soubesse. Mas não posso mentir, seu mistério me encantou, suas histórias me entretiveram, e não sei se ele estava usando magia naquele momento e adiante, mas foi à partir deste dia que comecei a tentar esquecer da minha falecida mãezinha.

Após o retorno do velho Qirin dormimos e partimos na manhã seguinte. O velho me fez algumas perguntas, e, como Varyon já tinha me convencido de que seu mestre era um bom homem e que as pessoas se acostumavam com seu olhar assustador com o tempo, eu as respondia. Ao longo da viagem eles me perguntaram se eu gostaria de ficar com eles, eu não via qualquer outro lugar para ir, contei-lhes minha história e então comecei a ajudá-los no que podia. Costura, principalmente, mas também cantava para alegrá-los, eles me contavam histórias e lendas, algumas que eu já conhecia dos bardos que tive o prazer de encontrar ao longo da vida, mas algumas que, sem que eu soubesse faziam referência a mim. E Varyon sempre tentava falar algo além do que devia e Qirin o cortava. Passei a gostar daqueles dois, e nossa história deve ser só nossa. 

Qirin ensinava-nos a ler, treinava-nos na caça, nos instruía a respeito das plantas, as comestíveis e as venenosas, dos astros celestes dos animais do deserto, nos disciplinava e contava diversas histórias, explicava-nos coisas como por que uma pedra cai após ser lançada para o alto, nos fazia refletir sobre números e nos fazia contar diversas vezes quantidades exorbitantes. Por isso Varyon o chamava de mestre. Ao menos era nisso que eu acreditava.

Ao longo de quatro anos e mais um pouco vivi com eles. Parece que o destino já estava traçado nas nossas mãos. Por mais que eu não fosse tão hábil em lê-las como minha mãe era, eu sabia que uma nova mudança estava prestes a ocorrer. E havia outras, agendadas nas confusas linhas das minhas mãos. Muitas outras. Varyon e Qirin nunca deixaram-me tentar ler as suas, diziam que era perigoso saber o futuro, e que não estavam interessados em saber os deles. Eu tentava ver os meus nas estrelas do céu do deserto, à noite, na minha mão, no vento, nas plantas, nas nuvens... queria compreender melhor o que o futuro reservava para mim.

E foi num dia de estranha palidez celeste que, enquanto atravessávamos o Vale do Caos sob uma chuva torrencial e repentina, um novo evento alterou minha vida drasticamente. Um ser negro e espectral barrou nosso caminho falando coisas numa língua áspera e aterradora. Sua voz era rascante, e, junto das pesadas gotas de chuva fizeram enregelar meu sangue. O Mestre nos parou com seu cajado, e, abraçados sob a mesma capa, senti Varyon se retesar. Vi seus olhos alertas e prontos para um confronto vindouro, como acontecia quando caçávamos. Mas agora nós éramos a presa, e estávamos em seu território.

No que pareceu um comando, o espectro, que discutia com meu mestre naquela língua que eu desconhecia, fez cair um raio sobre nós. Foi quando tudo fez mais sentido. Da explosão causada pela descarga elétrica numa barreira mágica que Qirin criou sobre nós surgiram outras criaturas como a primeira, que rodopiavam sem tocar o chão ao redor de nós, quase que num cântico funerário. Já tínhamos lidado com homens lagarto, bandidos, comerciantes, magos acreditando que poderiam ganhar algo de nós, mas nunca com os mortos furiosos.

Qirin irradiava uma tênue luz esbranquiçada, algo que eu nunca havia visto antes, apenas em suas histórias. E por causa delas, de repente, me dei conta do que ocorria. Era ele o mago branco das lendas que contava. E logo descobri que era Varyon, de fato, o herdeiro do sol e do mar. O, a essa altura, jovem rapaz retirou a capa, e numa elegante e imponente postura de combate desarmado protegeu-me das criaturas que avançaram contra nós, enquanto controlava a água que despencava do céu como se fizesse parte dela.

Eu assisti a tudo, impotente e deslumbrada, e muito assustada. Vi Varyon rechaçar as criaturas com golpes contundentes de sua magia. Qirin duelava com o primeiro Espectro lançando raios de energia luminosa em direção a ele. Mas eu percebi que eles não estavam conseguindo pará-los. Não importa o que fizessem eles continuavam avançando, mais e mais, esgotando as forças dos dois.

- Tire ela daqui! - Ouvi Qirin gritar por entre a tempestade, que parecia ter aumentado.

- Mestre o que o senhor vai ...

- Leve logo a garota! - Rugiu o velho, com sua voz estrondeando como um trovão. - Voltem! Saiam logo daqui! Vou atrasá-los!

Os espectros pareceram rir disso, pois um silvo gutural e ressonante ecoou pelo vale. Senti o chão tremer quando Varyon me puxou pelo braço correndo comigo pelo caminho que viemos. Uma luz branca fortíssima inundou o vale ao mesmo tempo que o som seco de pedras trincando, e, logo, de pedras desabando, abafaram o som da chuva. Varyon correu comigo desviando-se das pedras que caíam, mas logo ficou impossível, pois uma verdadeira avalanche despencou sobre nós. 

Novamente adotando uma postura altiva Varyon gritou algumas palavras e, com seus olhos brilhando, girou num eixo pisando cautelosamente com os pés, enquanto com os braços gesticulava num movimento que abarcava o mundo. Uma grande bolha de água se formou ao redor de nós dois aglutinando as gotas de chuva e quando as pedras caíram tiveram seu ímpeto retardado por conta da água que nos protegia. Vimos um novo clarão atrás de nós, e ouvimos o vento uivar pelas pedras que iam se acumulando nas laterais do vale.

Ao fim dele olhamos para trás e não restava mais nada, nem sinal de nosso mestre, pois a passagem que tínhamos usado foi completamente obstruída pelas pedras. Varyon estava completamente exausto, mas nos forçamos a continuar correndo, parando apenas muito depois, quando ele já não aguentava mais. Me explicou que a energia que ele havia gastado tinha sido demais para continuar agora, e não conseguiria continuar se não repusesse a energia perdida. Seu nariz e suas gengivas sangravam, sua pele estava mais vermelha que o normal, e tremores constantes percorriam seu corpo. Eu senti um aperto no coração, e senti que ia perdê-lo. Eu não queria perdê-lo. As lágrimas ameaçaram invadir meus olhos, mas quando ele percebeu ele pediu para que eu me acalmasse. Eu o abracei, ele me abraçou de volta.

Lembro do seu calor, do seu cheiro, do movimento do seu peito, da frequência do seu coração, dos seus dedos em minhas costas.

- Qirin está morto - eu murmurei.

- Eu sei - afirmou ele.

E nós dois choramos. Ajudei-o a caminhar, para sairmos da chuva. Encontramos uma grande árvore de raízes altas e nos enfiamos ali debaixo. As raízes eram elevadas o bastante para acendermos uma fogueira e nos aquecermos. Dormimos colados um no outro naquela noite, abraçados e tremendo.

Ele tinha dezessete, eu, treze.

Acordei na manhã seguinte com uma chuva moderada ainda caindo, e o calor do corpo de Varyon me aprazendo. Contudo, estava quente demais. Ele estava febril. Muito mais do que já tinha ficado quando tive de tratar de uma doença qualquer que ele já tivesse pego. Estava respirando vagarosamente, e uma expressão sofrida se refletia em seu cenho franzido, em seu lábio repuxado.

Eu tinha de fazer alguma coisa, tinha de fazer! Por isso fui procurar ervas que pudessem auxiliá-lo, encontrei e retornei para árvore que usávamos como acampamento. E ele não estava mais lá. Apenas as brasas da fogueira e as coisas que tínhamos, reviradas. Eu procurei por rastros, e não havia nenhum... e deveria ser fácil encontrar algum. Se houvesse algum... Estava chovendo, o chão estava enlameado, eu veria os rastros recentes! Mas não havia nada. Nada! Eu procurei ao redor, por um longo tempo... até me dar conta de que ele não estava mais lá. Chorei abraçada aos joelhos desesperada. Perdida. Chorei muito.

O dia avançou até a chuva parar, e, além disso, nada havia mudado. Eu estava sozinha, perdida na floresta que margeava o Vale do Caos, os sons da mata começaram a encher meus ouvidos, e a esperança já tinha escorrido por mim para dentro da terra, junto da água. Eu queria morrer, seria mais fácil se eu morresse, foi quando percebi marcas no tronco da árvore. Alguns galhos quebrados. Garras escalando... E não eram de nenhum animal que eu conhecesse.

Varyon estava vivo ainda! Seja lá onde estivesse, vivia, não havia porque estar morto, se tivesse de estar morto estaria morto aqui. Quem era ele? O que ele representava? Sorvi da terra minha esperança de volta e, com um milhão de perguntas na minha cabeça, recolhi nossas coisas.

Parti para a estrada mais próxima pela qual tínhamos passado. E estava decidida a procurar uma forma de encontrá-lo, sabia que não conseguiria fazer isso sozinha. Mas vou fazê-lo! Tenho de fazê-lo. Sou Sâmyla, a flor que traz a vida àqueles que acreditam que ela já foi perdida, e sou água assim como Varyon. Vou encontrá-lo. Tenho de encontrá-lo!