Hillforts: Guerra e Simbolismo
Armit chama a atenção dos autores que desincorporam a
guerra do todo social e cultural, apontando o terrível equívoco que seria
estudar uma coisa separada da outra.[1] Se
a guerra, como os autores afirmam, faz parte, com tanta intensidade, da vida de
todos, seria estranho se estas obras colossais estivessem completamente
desligadas, ou não estivessem profundamente ligadas a ela, pelo menos no
primeiro momento. A sua construção provavelmente serviu para atender a uma
forma de fazer guerra muito específico da sua sociedade. E suas fortificações e
seus elementos foram sendo alterados conforme sua necessidade ia se
modificando, fosse por alterações na forma de fazer guerra, ou outras questões
sociais e econômicas.
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Celtas enfrentando romanos (meramente ilustrativo) |
D. W. Harding, em sua obra, cita James que confirma nossa
perspectiva de que:
"a 'situação padrão' na Idade do Ferro não era
nem paz nem guerra, mas insegurança crônica, em que o
papel do Hillfort como um impedimento para os agressores,
entre suas outras funções, foi,
sem dúvida, significativo"[2]
Este medo deveria se dar também pela naturalidade dos
saques que tinham lugar nas terras alheias. Os estilos de combate mais
prováveis em sociedades sem estado, como mostra a etnografia e Ian Armit, em
seu trabalho, eram as emboscadas e assaltos velozes, envolvendo saques.[3]
Por isso, faz sentido que os Hillforts tenham sido erguidos para enfrentar
justamente este tipo de incursão militar, já que suas valas e sua posição,
normalmente elevada, além das entradas, muitas vezes, labirínticas, impedem que
um grupo de homens, se já não for avistado à distância por algum indivíduo
dentro do Hillfort, entre e saia dele discretamente e sem maiores complicações.
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Funda |
Além disso, é possível extrair dos Hillforts e de algumas
evidências arqueológicas a possibilidade de vê-los como uma arma, não só como
uma defesa. Uma arma psicológica, uma arma social e política. O tamanho que
possuem, a alteração que causam na paisagem, a dificuldade que impõe ao que
antes seria um 'simples' saque. Pensar também, que atacar um Hillfort
signifique mostrar-se hostil para uma imensa região intimamente relacionada,
social, econômico e/ou política e militarmente. Além disso, em diversas
sociedades usa-se os corpos dos oponentes derrotados para atemorizar os demais
inimigos. Será que os Celtas também não fizeram isso?
"A
evidência de Manching, Glastonbury, Acy-Romance, e muitos outros
assentamentos sugere que rituais envolvendo
corpos humanos - vivos
ou mortos - desempenharam um
papel significativo nas atividades de assentamento no final da Idade do
Ferro."[4]
Muitas críticas foram feitas ao valor militar que os
Hillforts possuíam, como a falta de fontes de água dentro deles, por exemplo.
Mas, se pararmos para pensar, um cerco à uma estrutura como Maiden Castle, além
de requerer muitos homens para fechar o perímetro dele, exigiria um tempo e uma
motivação que talvez eles não possuíssem, pois dependiam da agricultura e dos
ciclos de plantio e colheita para terem alimento nos anos vindouros. O Hillfort
se apresentava mais como um baluarte temporário, pronto para momentos de crise,
do que uma defesa constante, por isso não se preocupar com tamanho preciosismo
em sua guarnição. Até por que, as estratégias de guerra não surgem de um dia
para o outro... Talvez tenha sido mesmo por conta de ser mal guarnecido
militarmente que as mais diversas formas de cerco tenham surgido, e
posteriormente começaram a preparar-se melhor para isso.
Outros Hillforts, especificamente tiveram sua realidade
militar duramente questionada, por conta de sua péssima localização, como o de
Chesters, próximo de Drem.[5]
Ele está abaixo de uma colina próxima, que permitiria que um grupo de
fundibulários alvejasse seu interior impiedosamente, porém este e outros
Hillforts, podem ter uma função diferenciada, uma questão mais subjetiva que os
envolva.
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Enterramento: Guerreiro com sua Espada |
Contudo, antes de tratar destas questões devemos pensar
também nas possíveis respostas para a afirmativa crítica de alguns autores
sobre o fato de haver pouca evidência arqueológica de ataques em Hillforts como
apontam, principalmente Bowden e McOmish, descaracterizando sua capacidade
militar.[6]
Primeiro, utilizando a resposta que o próprio Armit dá em seu texto, parece que
tem havido uma má interpretação dos enterramentos, pois as críticas eram que
menos de metade das ossadas possuíam traumas graves decorrentes de conflitos
massivos. Armit responde, então, fazendo um paralelo com as guerras com os
Índios na América do Norte no século XIX, onde não mais do que um a cada três
ferimentos deixariam uma marca identificável no osso.[7]
Uma segunda possibilidade, que não nega a primeira, é que,
decorrente de uma cultura, um ritual de guerra, particular destas comunidades,
possa criar um cenário onde o massacre não seja um acontecimento tão provável.
Por exemplo, Barry Cunliffe em sua obra trata de uma guerra que pode ser
travada individualmente, num enfrentamento de "heróis", baseado num
escrito de Diodorus Siculus, que descreve dois chefes militares Celtas se
enfrentando, mesmo que, posteriormente, ele diga que isso possa ocorrer mais de
uma vez, até mesmo dando ensejo a um enfrentamento geral.[8]
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Guerreiro em Carro de Guerra |
Retomando a questão subjetiva sobre os Hillforts que
tinha deixado de lado; Uma terceira opção, que não nega nenhuma das outras,
poderia ser ainda uma real diminuição dos conflitos abertos entre regiões e/ou
comunidades próximas, por conta, talvez, de um possível aumento da densidade
das redes de relações inter-comunais. Agora que estamos falando da idade do
Ferro Média e Tardia podemos considerar o crescimento da movimentação de bens,
uma concentração maior de recursos nos centros políticos e econômicos e o
surgimento de centros de comércio, de produção e de trocas, sejam eles os
Hillforts ou não, e logo redes cada vez mais complexas de interação.
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Torque de Ouro |
Digo isto, por que talvez aquilo que vimos sobre a
formação das elites, que poderiam ser tentativas de uma concentração de poder
por determinado segmento daquela comunidade, somado a todas estas
transformações que ocorreram basicamente em simultaneidade, tenha sido a
conjuntura que permitiu àquela elite se distinguir dos demais segmentos das
comunidades. Talvez por conta dos novos contatos internacionais, ou das
próprias relações com antigos segmentos da comunidade que tenham se seccionado
e passado para uma região de dependência, ou por conta do controle de uma nova
forma de manufatura, metalurgia talvez, ou de determinados bens, simbologias,
terras...
Conclusão
Neste artigo, então, tento, através das teorias vigentes,
pensar em algumas outras possibilidades para a apreensão simbólica dos
Hillforts, considerando que sua faceta militar já esteja mais do que
comprovada. Observando os movimentos sociais de elevação de determinadas
figuras, as guerreiras, por conta, possivelmente, dentre outros fatores, de um
verdadeiro vácuo de poder criado por um desconforto social decorrente do perigo
iminente no qual viviam. Pouco a pouco a comunidade deve ter cedido espaço a
determinados grupos que coordenaram a defesa da comunidade, ao mesmo tempo que
coordenaram uma ascensão social.
Compreendemos que, neste contexto de disputas internas e
de uma certa expectativa de paz, determinado grupo, através do longo tempo de
construção dos Hillforts e da apropriação e compreensão de todo seu simbolismo,
teve de começar a fazer seus acordos políticos, estabelecer alianças, o
comércio estrangeiro. Afinal, se não fosse assim, talvez no tempo de construção
de um Hillfort um grupo inimigo massacrasse toda uma comunidade.
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Barbury Castle Hillfort |
E, por isso, os Hillforts foram significativos, não só
pela proteção que estava agora se interpondo entre a comunidade e seus
inimigos, mas também enquanto construção social e política. Deve ter havido um
gerenciamento, especializações, uma mão de obra colossal, uma participação
ativa da comunidade na produção de algo comum, que pode ter sido apropriado
pouco a pouco pelo espírito comunitário, ao mesmo tempo que pode ter servido de
base para uma elevação social de uma pequena parcela da população e uma
acentuação da desigualdade no seio da comunidade.
Não se deu à toa a disseminação destes Hillforts. Muitos,
certamente, não se tratavam de defesas, mas sim de uma demonstração de
prestígio, que era o que eles passavam a significar, seja para os outros seja
para a própria comunidade e para a elevação de sua motivação. E não faria sentido que assim fosse se eles
não tivessem passado a possuir toda esta carga simbólica, que acreditamos que
eles tenham adquirido, sem perder de vista seu valor prático de defesa, de
encontro e de dispersão, de controle e de pacificação, através da imposição
física e simbólica. Mas a paz não deve ter sido atingida com eles, pelo
contrário, é quando surgem as elites que costumam haver as maiores guerras.
[1] ARMIT, Ian. Hillforts
at War: From Maiden Castle to Taniwaha Pā. Pg. 25
[2] JAMES, S. A
bloodless past: the pacification of the Early Iron Age. 2007 (T.doA.) -
Trecho retirado do texto do D. W. Harding.
[3] ARMIT, Ian. Hillforts
at War: From Maiden Castle to Taniwaha Pā. Pg. 35
[4] WELLS, Peter S. The
Iron Age. (T.doA.) Pg. 448
[5] Idem. Pg. 30
[6] BOWDEN, M. & MCOMISH D. The required barrier. 1987 - Retirado do texto do Ian
Armit.
[7] ARMIT, Ian. Hillforts
at War: From Maiden Castle to Taniwaha Pā. Pg. 32
[8] CUNLIFFE, Barry. Ancient
Celts.Pg. 101-102