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12 de janeiro de 2014

Inspiração - Suzy



Já era a terceira vez que estávamos ensaiando, mas desta vez já não era para valer. Estávamos apenas nos divertindo. Através da câmera, provavelmente com um sorriso no rosto, eu seguia os movimentos lânguidos, já nada acertados de Anna-Luca, girando, desequilibrando-se, dançando, vivendo...

Suzy ainda fumava, um braço dela segurava sua própria cintura, e o outro apoiava-se sobre o primeiro, enquanto levava o cigarro à boca em intervalos curtos. Apoiada no umbral da porta nos observava de lá. A fumaça misturava-se com a poeira que nós revolvemos e que o sol destacava sob seus raios de luz como flocos de cristal flutuantes.

A música que tínhamos gravado estava para repetir no rádio de pilha que tínhamos trazido, e já nem nos importávamos mais em ouvi-la tantas vezes. Anna-Luca puxou-me para dançar, e eu continuei tentando filmar nós dois enquanto ria compulsivamente da merda que estava ficando.

De repente eu senti as mãos de Suzy atrás de mim e seus pequenos seios pressionando minhas costas, enquanto seguíamos, os três, cada um em um ritmo completamente diferente, inclusive do da própria música. Ergui a câmera no alto, e mandei-as olhar, lembro de todos rirmos, talvez só eu tenha rido... Porque me lembro de nessa hora a Suzy falar o que ela queria. E o vapor da boca dela arrepiar a minha nuca. Foi aí que eu percebi que as mãos embaixo da minha camisa eram dela e não da Anna-Luca.

Não me lembro de ter respondido alguma coisa, mas ela foi fechando as janelas de correr de vidro craquelado da antiga lavanderia industrial que usávamos para nos escondermos de quem não queríamos que nos visse. Acho que muitas vezes nos escondíamos de nós mesmos, das bestas que vivem dentro de nós, dos nossos medos, dos nossos inimigos inventados, das nossas depressões... e já faziam bons cinco anos que ninguém ia aí. Ninguém além de nós e nossas personalidades frágeis.

Nós ensaiávamos aí, tocávamos, fumávamos, transávamos, brigávamos... e nos reconciliávamos. Os três, por que não? Eu conheci a Suzy primeiro, e foi ela que me mostrou o lugar, foi onde transamos pela primeira vez, até que, numa outra vez, ela trouxe a Anna-Luca. Elas fizeram o terceiro ano juntas. E, desde então, sempre viemos os três, eu no Sax, a Suzy cantando e Anna-Luca tocava violino, ninguém cumpria bem seu papel, mas não era isso o que importava.

Aqui discutíamos filosofia, política, tentávamos compreender o que é a liberdade dentro desta sociedade cheia de regras na qual vivemos, refletíamos sobre nossos objetivos na vida, sobre o que havia depois da morte... Enfim, estou devaneando de novo... ficou tudo escuro quando, por fim, a Suzy fechou a porta.

Eu e Anna-Luca já estávamos nos beijando, e acho que ela tinha dito que a Suzy não devia estar aqui, ou que ela estava estranha, ou ambos, quando eu a senti aproximando-se novamente. Eu fui andando para trás, rindo, com a câmera na mão, até tropeçar numa peça de ferro que nenhum de nós nunca soube para que servia, mas que era presa no chão e usávamos, também, como banco, eu caí sentado... Alguma delas sentou no meu colo, mas caímos para trás, e elas aproveitaram para tirar a minha calça.

Eu ria muito. Elas também.

Rolamos até parar perto da máquina de lavar, em estilo americano, que usávamos para o clipe, havia uma parte nele em que muita espuma saía dali, e o chão ao redor ainda estava todo molhado e a roupa que Anna-Luca punha lá dentro durante o vídeo também estava lá. Eram umas roupas que tínhamos alugado. E que ninguém se importou muito naquela hora, mesmo que ainda não estivessem pagas.

O som do isqueiro de Suzy arranhou o dos gemidos, meus e de Anna-Luca, enquanto ela acendia mais um baseado, e o cheiro típico inundava a ampla, mas não espaçosa, sala: cheia de antigas máquinas amontoadas e canos de ferro empoeirados. A droga foi passando de boca em boca como era nosso costume fazer com tudo que compartilhávamos. Sempre acreditamos que o mundo devia compartilhar mais as coisas, o dinheiro, a felicidade, a arte, o amor... Tudo!

Às vezes eu só ouvia elas duas enquanto me divertia sozinho; às vezes elas revezavam; às vezes não sabíamos bem o que fazíamos; mas dessa vez eu apenas via Suzy sentada lá onde eu tinha caído. Via por conta da ponta acesa do cigarro flutuando na semi-escuridão, mas logo eu não via mais nada, apenas ouvia, sentia, gostava. Anna-Luca também gostou.

Não sei quanto tempo se passou, nem acho que um dia eu vá saber... Mas eu sentia Anna-Luca tremendo, nervosa sobre mim, ouvia-a arranhando o botão de abrir da máquina de lavar, desesperada, arfante, seu rímel estava borrado, e parecia que ela queria chorar mais não conseguia.

Suzy estava de pernas cruzadas exatamente no mesmo lugar, com um dos pés balançando rapidamente, com seu short jeans curto, e seu top branco completamente imundo, passando o indicador pela boca, com este braço apoiado sobre o outro na mesma postura que ela sempre adota quando está nervosa, braço cruzado e tudo o mais, mas sem cigarros desta vez. Estava aflita, seu queixo tremia e sua respiração eram golfos agonizantes de ar, como os de uma criança sufocando com o choro.

Quando eu me mexi ela me encarou com uma expressão transtornada e assustadora. Subitamente eu me dei conta de que eu não conseguia respirar. Faltava ar ali, meus pulmões se contraíam e relaxavam e não vinha nada. Minha boca abriu-se desesperada por ar, me levantei, e corri até a porta!

-Está fechada - ouvi Suzy dizer com uma voz enrouquecida.

Forcei a tranca, e nada. Abaixei-me, encostei minha bochecha no chão gelado e abri a boca contra a iluminada fresta que dava para a rua. Sorvi longos goles de ar e poeira. Meu cérebro parecia funcionar pior do que nunca, eu não entendia o que eu estava fazendo ali, não entendia o que eu queria, o que eu ouvia, o que eu sentia, ou o que eu pensava, ou deveria pensar. Apenas ouvia Suzy tentando chorar e Anna-Luca lutando desesperada contra o botão da máquina de lavar.

Foi quando tudo ficou claro, e meu pulmão encheu-se de oxigênio. Não conseguia pensar pela falta dele. Andei até Anna-Luca, catando minha roupa pelo caminho e vestindo-a. A câmera estava caída, descarregada, onde a tinha deixado. Estava difícil respirar ali... Por alguma razão me abaixei ao lado dela e ajudei-a a arrombar a máquina de lavar, notei que as pontas dos seus dedos sangravam por debaixo das unhas e manchavam o metal da lataria da máquina.

Ela apenas contentou-se em sentar sobre as suas pernas dobradas para trás, com as mãos caídas entre os joelhos, os cabelos desgrenhados e a maquiagem borrada, olhando para o buraco escuro dentro da máquina de lavar quando eu o puxei com força, quebrando a tampa dela e libertando o odor terrivelmente  azedo de sabão em pó de má qualidade misturado à morte e putrefação.

Eu meti a mão dentro dela, tentando alcançar alguma das peças de roupa alugadas e apenas alcancei uma gosma mal cheirosa, e alguns rebites de metal que faziam parte do que um dia fora um colete... O olhar perdido de Anna-Luca e a respiração arranhada de Suzy estavam me deixando louco.

- Vamos sair daqui! - Disse a elas, ao que elas me responderam com meros olhares. Eu passei a mão por debaixo da axila de Anna-Luca tentando erguê-la, mas ela apenas deixou-se escorregar pelos meus dedos... Caminhei até um banquinho de metal que deixaram ali no passado e dei com ele contra a vidraça da porta estourando-a em dezenas de cacos que voaram para fora dali, abrindo passagem para o ar e para a luz que eu recebi (quase) contente.

Quando olhei para trás, Suzy trazia Anna-Luca, ajudando-a a caminhar. Ela estava mole e sua percepção parecia ausente da realidade.

- Vamos sair por aqui, já que a porta não abre... - falei. - Parece emperrada.

- Vamos ficar aqui... - sussurrou Anna-Luca, quase que inaudível. - Vamos esperar alguém vir... - completou...

- Ninguém vai vir até aqui, querida.- Contestou Suzy, ironicamente.

- Mas eu não gosto de cortes com vidro - declarou Anna-Luca, com um tom de súplica em sua voz frágil, erguendo os olhos para mim.

- Deixa eu só fazer isso aqui... - disse eu, tirando minha camisa, enrolando na mão, e quebrando o restante das pontas de vidro que ainda havia na porta. - Não dá pra limpar mais que isso, mas da pra passar com cuidado. Vamos...

Eu peguei na mão de Anna-Luca e ela pôs seu peso sobre mim, buscando por segurança e coragem. Suzy me empurrou, no mesmo instante, e passou uma de suas pernas pela porta, resmungando e estalando os dentes quando sua coxa raspou no serrilhado de vidro na base da janelinha da porta. Sangue quente escorreu para dentro, e Anna-Luca desviou o olhar.

Desenrolei a minha camisa da mão e a pus sobre a parte sangrenta, para tentar aliviar a passagem dela. Ajudei-a. E logo atrás fui eu. Suzy já estava na varanda da antiga lavanderia. Terra e pedras cobriam o antigo chão de ardósia, o antigo trilho de trem que corria beirando todo o complexo da fábrica estava coberto também, e o sol quente e brilhante fazia o horizonte tremular, desfigurando, ao longe, as silhuetas de alguns cachorros que brigavam por alguma coisa.

- Não devia haver um morro ali? - Perguntou Anna-Luca displicentemente, e eu olhei, achando estranho, pois devia mesmo, e agora apenas planície e céu encontravam-se na imensidão.

- Suzy, espere por nós! - Falei, quando a vi se afastando. Um cachorro grande vinha na direção dela, e não sei que raça era, mas acredito que fosse um pastor alemão, ele parecia magro e faminto. Ele vinha farejando o chão sem parecer notá-la. Ela virou o rosto para mim quando eu a chamei, mas ela apenas me encarou, com o mesmo olhar perturbado que me mandou lá dentro, e olhou para o cachorro de novo, ao que ele estancou, e provou o ar.

Mostrou os dentes para ela e rosnou. Os pelos de suas costas se eriçaram, e o meu coração foi feito em mil pedaços quando Anna-Luca enfiou as unhas no meu braço, porque naquele momento um gato, surgido do nada, passou por debaixo de nossas pernas.

O cão latiu alto, e eu vi os outros cães, no horizonte, latindo em resposta. Mas este aqui estava encarando os olhos de Suzy, e ela os dele, e ela aproximou as costas da mão do animal, que recuou mais um passo, abaixando-se e rosnando, adotando, obviamente, uma posição de ataque. O gato saltou para o meio deles dois, roubando a atenção do cachorro, o felino me encarou como Suzy tinha feito, e afastou-se com o cão perseguindo-o e ignorando a gente.

Contudo, os demais cães começavam a correr nesta direção, e eram dez ou mais. Meu coração estava acelerado. Meu braço agora sangrando e doendo. Meu suor escorria frio da minha cabeça. E uma sensação completamente desagradável crescia dentro de mim, como um milhão de pontas de vidro geladas que cortassem meu peito e meu ventre, indo até as pontas dos meus dedos em espasmos de nervosismo.

- Vamos voltar lá para dentro e traçar um plano... - estava dizendo, e notei que minha voz estava embargada.

- Um plano? - Interrompeu Suzy, do meio do que deveria ser a rua.

- Esperar, matar os cachorros, eu sei lá... - Supus. - Legítima defesa... Podemos atestar estar sob efeito de entorpecentes... Efeitos de drogas... - Eu não fazia sentido.

- É, drogas! - Sugeriu Suzy, não sei dizer se foi irônico. - Estamos drogados ainda! - Ela exclamou, sorrindo de forma esquisita.

Anna-Luca me olhava, e olhava para os cachorros, e viu meu braço sangrando, e as suas unhas voltando a penetrar minha pele. Ajudei-a a entrar novamente, e a Suzy aproximou-se para entrar também.

- O cachorro te estranhou por que você está morta... - eu disse para Suzy, enquanto ela passava a perna ferida pela janela, sem saber por que.

- O que? - Ela parou, no meio do caminho e olhou para mim, incrédula. - Eu? Morta? - Adicionou com um sorriso debochado. E entrou.

Quando eu ia entrar ela se pôs na frente da janela, com Anna-Luca ao seu lado, ainda impotente e sem entender o que dizíamos.

- O gato que me disse. - Afirmei.

Saiu da minha boca novamente, parecendo coerente.

- Eu não estou nada morta! - Ela respondeu decididamente, sentindo-se injustiçada. - E, se eu estou, por que é que vocês também não estão? - Completou, olhando para mim e para Anna-Luca, como quem denotava saber sobre algum crime terrível que tentássemos esconder.

Eu não sabia o que responder, e os cachorros se aproximavam.

- Você sempre prefere ela! - Veio de repente. Suzy me encarava com raiva. - Desde que eu a apresentei a você, você só quis saber dela!...

- Me deixe entrar, os cachorros vão me matar!

- Ela nem devia estar aqui! - Ela continuou. Aumentando o tom de voz. - Nem devia estar no nosso... ou melhor... NO MEU CLIPE!

- Pare de gritar! - Pediu Anna-Luca, aflita.

- Do que você está falando? - Eu indaguei, completamente desnorteado.

- ESSE LUGAR AGORA É MEU! SÓ MEU! COMO ERA ANTES!

- Me deixe entrar! - Eu gritei de volta, agora verdadeiramente desesperado. O olhar dela estava perturbado, estava maligno. Sua maquiagem, borrada também, deixava-a com o aspecto de uma psicopata. E ela sorria, olhando para mim.

Anna-Luca a empurrou, chorosa, gritando:

- Deixe-o entrar!

Eu saltei lá para dentro quando Suzy caiu, desprevenida. Arranhei minhas costas na parte de cima da janela, minhas mãos nas laterais, e cai sobre Anna-Luca, com um cachorro enorme metendo a cabeça para dentro do lugar, preenchendo-o com seus latidos famélicos.

- É para matar os cachorros, então? - Perguntou Suzy, se levantando, alcançando um cano longo de metal. Tentando sobrepor sua voz aos latidos histéricos do animal. Um dogue alemão albino.

Anna-Luca me olhou assustada enquanto eu me levantava e ajudava-a a levantar-se também. Encostei-me na parede, evitando aproximar-me do animal e de Suzy, e caminhei em direção ao banco que tinha usado para quebrar o vidro. Mas antes de alcançá-lo Suzy bradou e avançou na minha direção, descrevendo um arco no ar com o cano que começou sobre seu ombro e veio descendo na direção de meu rosto.

- VAMOS COMEÇAR POR VOCÊ ENTÃO! SEU DESGRAÇADO!

Eu tentei me defender, mas foi estúpido, eu senti meu braço sendo fraturado sobre o golpe insano de Suzy, ao mesmo tempo que o som agudo do grito de Anna-Luca ecoou por todo o metal que havia no lugar: reverberando.

- Suzy! - Uma calma, vinda não sei de onde, se apoderou de mim. - Calma! O que você está fazendo?! Você quebrou meu braço! - Tentei racionalizar.

Ela interrompeu seu próximo passo, aflita e insegura, enquanto eu buscava aproximar-me mais do banco.

- Por que você só não me ama? - Ela questionou, não sei se verdadeiramente para mim, talvez tenha sido mais para ela.

- Te amar...?

- Seria tão mais fácil... - ela resmungou. - Eu te faria feliz...

Eu a encarei, absorto e chocado.

- Suzy, você tá chapada... - foi Anna-Luca quem falou. - Larga isso.

- NÃOFALACOMIGOSUAVAGABUNDA! - Ela explodiu, retornando ao estado de frenesi.

Ela olhou para mim.

- Sempre se defendendo... - Ela parecia decidir-se. - Seu babaca! - O cachorro latia. - Eu sempre fiz tudo para você! - Ela brandiu novamente o cano.

Eu alcancei o banco e avancei contra ela quando ela ameaçou me atacar de novo. Mas meu braço quebrado não respondeu ao comando, e o cano de ferro afundou na minha cabeça... Mas eu não morri instantaneamente...

Pelo meu outro olho eu vi Anna-Luca tentar pará-la, gritando em desespero, apenas para tomar uma traulitada na lateral do crânio, que se esfacelou, sob os gritos desesperados de Suzy:

-VA-GA-BUN-DA! - O cano repicava como um sino a cada golpe, pontuado por uma sílaba, preenchendo todo o ar com sua canção.

Me entreguei quando a vi sobre mim e senti sua mão no botão da minha calça...

Preferi morrer.

Mas eu ouvi. Ouvi quando ela disse:

Estou morta também. E você não vai mais fugir de mim.

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