Já era a terceira vez
que estávamos ensaiando, mas desta vez já não era para valer. Estávamos apenas
nos divertindo. Através da câmera, provavelmente com um sorriso no rosto, eu
seguia os movimentos lânguidos, já nada acertados de Anna-Luca, girando,
desequilibrando-se, dançando, vivendo...
Suzy ainda fumava, um
braço dela segurava sua própria cintura, e o outro apoiava-se sobre o primeiro,
enquanto levava o cigarro à boca em intervalos curtos. Apoiada no umbral da
porta nos observava de lá. A fumaça misturava-se com a poeira que nós
revolvemos e que o sol destacava sob seus raios de luz como flocos de cristal
flutuantes.
A música que tínhamos
gravado estava para repetir no rádio de pilha que tínhamos trazido, e já nem
nos importávamos mais em ouvi-la tantas vezes. Anna-Luca puxou-me para dançar,
e eu continuei tentando filmar nós dois enquanto ria compulsivamente da merda
que estava ficando.
De repente eu senti as
mãos de Suzy atrás de mim e seus pequenos seios pressionando minhas costas,
enquanto seguíamos, os três, cada um em um ritmo completamente diferente,
inclusive do da própria música. Ergui a câmera no alto, e mandei-as olhar,
lembro de todos rirmos, talvez só eu tenha rido... Porque me lembro de nessa
hora a Suzy falar o que ela queria. E o vapor da boca dela arrepiar a minha
nuca. Foi aí que eu percebi que as mãos embaixo da minha camisa eram dela e não
da Anna-Luca.
Não me lembro de ter
respondido alguma coisa, mas ela foi fechando as janelas de correr de vidro
craquelado da antiga lavanderia industrial que usávamos para nos escondermos de
quem não queríamos que nos visse. Acho que muitas vezes nos escondíamos de nós
mesmos, das bestas que vivem dentro de nós, dos nossos medos, dos nossos
inimigos inventados, das nossas depressões... e já faziam bons cinco anos que
ninguém ia aí. Ninguém além de nós e nossas personalidades frágeis.
Nós ensaiávamos aí,
tocávamos, fumávamos, transávamos, brigávamos... e nos reconciliávamos. Os
três, por que não? Eu conheci a Suzy primeiro, e foi ela que me mostrou o
lugar, foi onde transamos pela primeira vez, até que, numa outra vez, ela
trouxe a Anna-Luca. Elas fizeram o terceiro ano juntas. E, desde então, sempre
viemos os três, eu no Sax, a Suzy cantando e Anna-Luca tocava violino, ninguém cumpria
bem seu papel, mas não era isso o que importava.
Aqui discutíamos
filosofia, política, tentávamos compreender o que é a liberdade dentro desta
sociedade cheia de regras na qual vivemos, refletíamos sobre nossos objetivos
na vida, sobre o que havia depois da morte... Enfim, estou devaneando de
novo... ficou tudo escuro quando, por fim, a Suzy fechou a porta.
Eu e Anna-Luca já
estávamos nos beijando, e acho que ela tinha dito que a Suzy não devia estar
aqui, ou que ela estava estranha, ou ambos, quando eu a senti aproximando-se
novamente. Eu fui andando para trás, rindo, com a câmera na mão, até tropeçar
numa peça de ferro que nenhum de nós nunca soube para que servia, mas que era
presa no chão e usávamos, também, como banco, eu caí sentado... Alguma delas
sentou no meu colo, mas caímos para trás, e elas aproveitaram para tirar a
minha calça.
Eu ria muito. Elas
também.
Rolamos até parar perto
da máquina de lavar, em estilo americano, que usávamos para o clipe, havia uma
parte nele em que muita espuma saía dali, e o chão ao redor ainda estava todo
molhado e a roupa que Anna-Luca punha lá dentro durante o vídeo também estava
lá. Eram umas roupas que tínhamos alugado. E que ninguém se importou muito naquela
hora, mesmo que ainda não estivessem pagas.
O som do isqueiro de
Suzy arranhou o dos gemidos, meus e de Anna-Luca, enquanto ela acendia mais um
baseado, e o cheiro típico inundava a ampla, mas não espaçosa, sala: cheia de
antigas máquinas amontoadas e canos de ferro empoeirados. A droga foi passando
de boca em boca como era nosso costume fazer com tudo que compartilhávamos. Sempre
acreditamos que o mundo devia compartilhar mais as coisas, o dinheiro, a
felicidade, a arte, o amor... Tudo!
Às vezes eu só ouvia
elas duas enquanto me divertia sozinho; às vezes elas revezavam; às vezes não
sabíamos bem o que fazíamos; mas dessa vez eu apenas via Suzy sentada lá onde
eu tinha caído. Via por conta da ponta acesa do cigarro flutuando na
semi-escuridão, mas logo eu não via mais nada, apenas ouvia, sentia, gostava.
Anna-Luca também gostou.
Não sei quanto tempo se
passou, nem acho que um dia eu vá saber... Mas eu sentia Anna-Luca tremendo,
nervosa sobre mim, ouvia-a arranhando o botão de abrir da máquina de lavar,
desesperada, arfante, seu rímel estava borrado, e parecia que ela queria chorar
mais não conseguia.
Suzy estava de pernas
cruzadas exatamente no mesmo lugar, com um dos pés balançando rapidamente, com
seu short jeans curto, e seu top branco completamente imundo, passando o
indicador pela boca, com este braço apoiado sobre o outro na mesma postura que
ela sempre adota quando está nervosa, braço cruzado e tudo o mais, mas sem
cigarros desta vez. Estava aflita, seu queixo tremia e sua respiração eram
golfos agonizantes de ar, como os de uma criança sufocando com o choro.
Quando eu me mexi ela
me encarou com uma expressão transtornada e assustadora. Subitamente eu me dei
conta de que eu não conseguia respirar. Faltava ar ali, meus pulmões se contraíam
e relaxavam e não vinha nada. Minha boca abriu-se desesperada por ar, me
levantei, e corri até a porta!
-Está fechada - ouvi
Suzy dizer com uma voz enrouquecida.
Forcei a tranca, e
nada. Abaixei-me, encostei minha bochecha no chão gelado e abri a boca contra a
iluminada fresta que dava para a rua. Sorvi longos goles de ar e poeira. Meu
cérebro parecia funcionar pior do que nunca, eu não entendia o que eu estava
fazendo ali, não entendia o que eu queria, o que eu ouvia, o que eu sentia, ou
o que eu pensava, ou deveria pensar. Apenas ouvia Suzy tentando chorar e
Anna-Luca lutando desesperada contra o botão da máquina de lavar.
Foi quando tudo ficou
claro, e meu pulmão encheu-se de oxigênio. Não conseguia pensar pela falta
dele. Andei até Anna-Luca, catando minha roupa pelo caminho e vestindo-a. A
câmera estava caída, descarregada, onde a tinha deixado. Estava difícil
respirar ali... Por alguma razão me abaixei ao lado dela e ajudei-a a arrombar
a máquina de lavar, notei que as pontas dos seus dedos sangravam por debaixo
das unhas e manchavam o metal da lataria da máquina.
Ela apenas contentou-se
em sentar sobre as suas pernas dobradas para trás, com as mãos caídas entre os
joelhos, os cabelos desgrenhados e a maquiagem borrada, olhando para o buraco
escuro dentro da máquina de lavar quando eu o puxei com força, quebrando a
tampa dela e libertando o odor terrivelmente azedo de sabão em pó de má qualidade misturado
à morte e putrefação.
Eu meti a mão dentro
dela, tentando alcançar alguma das peças de roupa alugadas e apenas alcancei
uma gosma mal cheirosa, e alguns rebites de metal que faziam parte do que um
dia fora um colete... O olhar perdido de Anna-Luca e a respiração arranhada de
Suzy estavam me deixando louco.
- Vamos sair daqui! -
Disse a elas, ao que elas me responderam com meros olhares. Eu passei a mão por
debaixo da axila de Anna-Luca tentando erguê-la, mas ela apenas deixou-se
escorregar pelos meus dedos... Caminhei até um banquinho de metal que deixaram
ali no passado e dei com ele contra a vidraça da porta estourando-a em dezenas
de cacos que voaram para fora dali, abrindo passagem para o ar e para a luz que
eu recebi (quase) contente.
Quando olhei para trás,
Suzy trazia Anna-Luca, ajudando-a a caminhar. Ela estava mole e sua percepção
parecia ausente da realidade.
- Vamos sair por aqui,
já que a porta não abre... - falei. - Parece emperrada.
- Vamos ficar aqui... -
sussurrou Anna-Luca, quase que inaudível. - Vamos esperar alguém vir... -
completou...
- Ninguém vai vir até
aqui, querida.- Contestou Suzy,
ironicamente.
- Mas eu não gosto de
cortes com vidro - declarou Anna-Luca, com um tom de súplica em sua voz frágil,
erguendo os olhos para mim.
- Deixa eu só fazer
isso aqui... - disse eu, tirando minha camisa, enrolando na mão, e quebrando o
restante das pontas de vidro que ainda havia na porta. - Não dá pra limpar mais
que isso, mas da pra passar com cuidado. Vamos...
Eu peguei na mão de
Anna-Luca e ela pôs seu peso sobre mim, buscando por segurança e coragem. Suzy
me empurrou, no mesmo instante, e passou uma de suas pernas pela porta, resmungando
e estalando os dentes quando sua coxa raspou no serrilhado de vidro na base da
janelinha da porta. Sangue quente escorreu para dentro, e Anna-Luca desviou o
olhar.
Desenrolei a minha
camisa da mão e a pus sobre a parte sangrenta, para tentar aliviar a passagem
dela. Ajudei-a. E logo atrás fui eu. Suzy já estava na varanda da antiga
lavanderia. Terra e pedras cobriam o antigo chão de ardósia, o antigo trilho de
trem que corria beirando todo o complexo da fábrica estava coberto também, e o
sol quente e brilhante fazia o horizonte tremular, desfigurando, ao longe, as
silhuetas de alguns cachorros que brigavam por alguma coisa.
- Não devia haver um
morro ali? - Perguntou Anna-Luca displicentemente, e eu olhei, achando
estranho, pois devia mesmo, e agora apenas planície e céu encontravam-se na
imensidão.
- Suzy, espere por nós!
- Falei, quando a vi se afastando. Um cachorro grande vinha na direção dela, e
não sei que raça era, mas acredito que fosse um pastor alemão, ele parecia
magro e faminto. Ele vinha farejando o chão sem parecer notá-la. Ela virou o
rosto para mim quando eu a chamei, mas ela apenas me encarou, com o mesmo olhar
perturbado que me mandou lá dentro, e olhou para o cachorro de novo, ao que ele
estancou, e provou o ar.
Mostrou os dentes para
ela e rosnou. Os pelos de suas costas se eriçaram, e o meu coração foi feito em
mil pedaços quando Anna-Luca enfiou as unhas no meu braço, porque naquele
momento um gato, surgido do nada, passou por debaixo de nossas pernas.
O cão latiu alto, e eu
vi os outros cães, no horizonte, latindo em resposta. Mas este aqui estava
encarando os olhos de Suzy, e ela os dele, e ela aproximou as costas da mão do
animal, que recuou mais um passo, abaixando-se e rosnando, adotando,
obviamente, uma posição de ataque. O gato saltou para o meio deles dois,
roubando a atenção do cachorro, o felino me encarou como Suzy tinha feito, e
afastou-se com o cão perseguindo-o e ignorando a gente.
Contudo, os demais cães
começavam a correr nesta direção, e eram dez ou mais. Meu coração estava
acelerado. Meu braço agora sangrando e doendo. Meu suor escorria frio da minha
cabeça. E uma sensação completamente desagradável crescia dentro de mim, como
um milhão de pontas de vidro geladas que cortassem meu peito e meu ventre, indo
até as pontas dos meus dedos em espasmos de nervosismo.
- Vamos voltar lá para
dentro e traçar um plano... - estava dizendo, e notei que minha voz estava
embargada.
- Um plano? -
Interrompeu Suzy, do meio do que deveria ser a rua.
- Esperar, matar os
cachorros, eu sei lá... - Supus. - Legítima defesa... Podemos atestar estar sob
efeito de entorpecentes... Efeitos de drogas... - Eu não fazia sentido.
- É, drogas! - Sugeriu
Suzy, não sei dizer se foi irônico. - Estamos drogados ainda! - Ela exclamou,
sorrindo de forma esquisita.
Anna-Luca me olhava, e
olhava para os cachorros, e viu meu braço sangrando, e as suas unhas voltando a
penetrar minha pele. Ajudei-a a entrar novamente, e a Suzy aproximou-se para
entrar também.
- O cachorro te
estranhou por que você está morta... - eu disse para Suzy, enquanto ela passava
a perna ferida pela janela, sem saber por que.
- O que? - Ela parou,
no meio do caminho e olhou para mim, incrédula. - Eu? Morta? - Adicionou com um
sorriso debochado. E entrou.
Quando eu ia entrar ela
se pôs na frente da janela, com Anna-Luca ao seu lado, ainda impotente e sem
entender o que dizíamos.
- O gato que me disse.
- Afirmei.
Saiu da minha boca
novamente, parecendo coerente.
- Eu não estou nada
morta! - Ela respondeu decididamente, sentindo-se injustiçada. - E, se eu
estou, por que é que vocês também não estão? - Completou, olhando para mim e
para Anna-Luca, como quem denotava saber sobre algum crime terrível que
tentássemos esconder.
Eu não sabia o que
responder, e os cachorros se aproximavam.
- Você sempre prefere
ela! - Veio de repente. Suzy me encarava com raiva. - Desde que eu a apresentei
a você, você só quis saber dela!...
- Me deixe entrar, os
cachorros vão me matar!
- Ela nem devia estar
aqui! - Ela continuou. Aumentando o tom de voz. - Nem devia estar no nosso...
ou melhor... NO MEU CLIPE!
- Pare de gritar! -
Pediu Anna-Luca, aflita.
- Do que você está
falando? - Eu indaguei, completamente desnorteado.
- ESSE LUGAR AGORA É
MEU! SÓ MEU! COMO ERA ANTES!
- Me deixe entrar! - Eu
gritei de volta, agora verdadeiramente desesperado. O olhar dela estava
perturbado, estava maligno. Sua maquiagem, borrada também, deixava-a com o
aspecto de uma psicopata. E ela sorria, olhando para mim.
Anna-Luca a empurrou,
chorosa, gritando:
- Deixe-o entrar!
Eu saltei lá para
dentro quando Suzy caiu, desprevenida. Arranhei minhas costas na parte de cima
da janela, minhas mãos nas laterais, e cai sobre Anna-Luca, com um cachorro
enorme metendo a cabeça para dentro do lugar, preenchendo-o com seus latidos
famélicos.
- É para matar os
cachorros, então? - Perguntou Suzy, se levantando, alcançando um cano longo de
metal. Tentando sobrepor sua voz aos latidos histéricos do animal. Um dogue
alemão albino.
Anna-Luca me olhou
assustada enquanto eu me levantava e ajudava-a a levantar-se também.
Encostei-me na parede, evitando aproximar-me do animal e de Suzy, e caminhei em
direção ao banco que tinha usado para quebrar o vidro. Mas antes de alcançá-lo
Suzy bradou e avançou na minha direção, descrevendo um arco no ar com o cano
que começou sobre seu ombro e veio descendo na direção de meu rosto.
- VAMOS COMEÇAR POR
VOCÊ ENTÃO! SEU DESGRAÇADO!
Eu tentei me defender,
mas foi estúpido, eu senti meu braço sendo fraturado sobre o golpe insano de
Suzy, ao mesmo tempo que o som agudo do grito de Anna-Luca ecoou por todo o metal
que havia no lugar: reverberando.
- Suzy! - Uma calma,
vinda não sei de onde, se apoderou de mim. - Calma! O que você está fazendo?!
Você quebrou meu braço! - Tentei racionalizar.
Ela interrompeu seu
próximo passo, aflita e insegura, enquanto eu buscava aproximar-me mais do
banco.
- Por que você só não
me ama? - Ela questionou, não sei se verdadeiramente para mim, talvez tenha
sido mais para ela.
- Te amar...?
- Seria tão mais
fácil... - ela resmungou. - Eu te faria feliz...
Eu a encarei, absorto e
chocado.
- Suzy, você tá
chapada... - foi Anna-Luca quem falou. - Larga isso.
-
NÃOFALACOMIGOSUAVAGABUNDA! - Ela explodiu, retornando ao estado de frenesi.
Ela olhou para mim.
- Sempre se
defendendo... - Ela parecia decidir-se. - Seu babaca! - O cachorro latia. - Eu
sempre fiz tudo para você! - Ela brandiu novamente o cano.
Eu alcancei o banco e
avancei contra ela quando ela ameaçou me atacar de novo. Mas meu braço quebrado
não respondeu ao comando, e o cano de ferro afundou na minha cabeça... Mas eu
não morri instantaneamente...
Pelo meu outro olho eu
vi Anna-Luca tentar pará-la, gritando em desespero, apenas para tomar uma
traulitada na lateral do crânio, que se esfacelou, sob os gritos desesperados
de Suzy:
-VA-GA-BUN-DA! - O cano
repicava como um sino a cada golpe, pontuado por uma sílaba, preenchendo todo o
ar com sua canção.
Me entreguei quando a
vi sobre mim e senti sua mão no botão da minha calça...
Preferi morrer.
Mas eu ouvi. Ouvi
quando ela disse:
Estou
morta também. E você não vai mais fugir de mim.
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