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18 de janeiro de 2021

Rancor

 Esta é uma história sobre Rancor.


Ela aconteceu num pacato condado bem ao norte de Orull, lá entre os picos e montanhas de Val das Covas. Quem conta essa história nunca sabe bem por onde começar ou onde terminar. Pessoalmente, sempre gosto de começá-la com o pecador na nave da igreja. Na calada da noite. Quando até os cães já tinham ido dormir e o único som que perturbava a cidade era o ranger constante do moinho d’água, ecoando solitário, mais abaixo, no vale.

Contudo, no teto alto da igreja, ecoavam os murmúrios de perdão daquele homem, que justo naquela noite decidira confessar-se perante o Eterno. Mas havia um outro som. Era um som suave e reverberante, que lhe chegava aos ouvidos, quando parava para respirar. Contínuo, baixo e indistinguível. Preenchia o ar ao seu redor como se fizesse parte da própria atmosfera do templo. Uma voz, talvez. Não mais que um sussurro.

Ele terminou sua prece, de joelhos, e levantou-se, diante do altar. Tudo ecoava no silêncio. E o sussurro persistia. Assim, ele foi até uma das sombrias laterais da nave, e caminhou com a mão nas paredes, lenta e cuidadosamente. Tentando identificar qualquer sentido naquele murmúrio perturbador. Podiam ser os anjos conversando com o Eterno sobre o dia… Seu coração estava acelerado e as palmas de suas mãos suavam. Ele, mais do que ninguém, sabia a quantidade de pecados que podiam ser praticados em um só dia, mesmo num lugarejo como aquele.

Ele sempre achou a atmosfera daquela igreja fantasmagórica. De dia até havia um pouco de sol. Mas, à noite, a luz provinha apenas de algumas velas grossas sobre o altar, e de alguns nichos laterais, dedicados a santos e santas da região, que tinham sido acesas por camponeses desesperados pelo auxílio dos céus. Em cada movimento que fazia, era preciso e cauteloso. E foi no vão de uma das escadarias laterais que seu coração parou. Seus dedos tocaram ferro gélido, que seus olhos eram incapazes de enxergar, e o som ficou mais intenso. Parecia vir lá de cima. 

Havia uma grade fechando a passagem e um pesado cadeado trancado, garantindo que ela continuasse assim. O homem pensou em chamar o padre, que morava numa casinha, logo depois do pomar, onde vivia também uma governanta, que não lhe deixava faltar nada. “Se a porta está trancada”, pensou, “apenas os espíritos poderiam ter entrado lá.” Ele mordeu a pele dos ossinhos dos dedos, para controlar o nervosismo. Mas enquanto se decidia, o som continuava. Rítmico. Marcando as marteladas de seu coração. E, no corredor, escada acima, apenas escuridão.

- O que eu faço? - Pensava ele. - Não posso estar ficando maluco…

E não estava.

O som aumentou. E logo diminuiu.

Parou.

Ele não tinha reparado, mas nem respirava. Ao dar-se conta, deu também dois passos para trás, puxou o ar e pensou em correr dali. Mas ouviu um trinco de porta abrindo lá em cima.

- Espíritos não usam portas - murmurou, para se convencer. - O padre está em casa… eu vi a luz da lareira quando cheguei. - Virou-se de costas e caminhou decidido até a porta de entrada da igreja.

Mesmo convencido de que o padre estava em casa, iria confirmar. O chamaria se fosse necessário... A cada passo virava a cabeça para trás. Mas, no que encostou as mãos no puxador gelado da porta, ouviu passos na escada, o som inconfundível do risinho de uma jovem, um chiado que calou o riso, e então, mais passos. Os barulhos ecoaram pela nave da igreja até desaparecer. Então ouviu o som da corrente do cadeado, chave girando, porta rangendo...

Ele já tinha saltado de volta para a escuridão da ala lateral, e estava escondido na sombra de uma das tapeçarias que contava a história da Última Vinda do Eterno, quando, de repente um outro homem foi iluminado pela luz fraca das velas. Ele havia caminhado até o centro da nave, feito uma reverência em direção ao altar, como quem pede desculpas e então, deu um assovio baixo em direção à escada e outra pessoa saiu de lá. Uma mulher.

Afinal, pareciam haver pecadores mais esforçados do que ele.

Certificando-se de que estavam sozinhos, aquele homem fechou a porta, agora sem tanta cerimônia. A mulher se agarrou em seus braços, rindo com mais vontade, e disse:

- Ainda não consigo acreditar… uma pesquisa noturna, você disse. Nossas almas pecadoras irão pesar… mentindo para o padre e para o Eterno.

- Para o padre talvez, mas o Eterno tudo vê e tudo sabe, não há como enganá-lo.

E os dois, se ajoelharam na frente do altar, para se retratar.

- De nada serviria tentar enganá-lo...

O homem escondido tinha deixado as sombras e caminhado lentamente até eles. Ambos saltaram assustados, virando-se, quando ele falou. A jovem emitiu um gritinho, confusa, e posicionou-se atrás de seu companheiro, que arregalou os olhos quando reconheceu quem estava diante deles.

- He… He… Herus?! - Ele foi pego tão de surpresa, tão de repente, que sua exímia cara de pau ficou tão oleosa que refletia o terror de seu coração. E não conseguiu falar mais nada.

Herus, por sua vez, estava tão aliviado de que os sons que ouvira não eram dos anjos dizendo ao Eterno sobre os desvios de seu caminho, que chegou a esboçar um sorriso quando disse ao seu meio-irmão mais novo:

- Thevir, eu vou deixá-lo agora, pois não quero atrapalhar a sua noite com esta puta. Mas amanhã, bem cedinho, eu estarei tomando meu desjejum, e pensando no que eu quererei que você faça para mim, para que eu mantenha este escândalo silenciado - Naquele instante, ele saboreou cada palavra, como saborearia na manhã seguinte cada pedaço de uma torta qualquer, que uma ama qualquer lhe serviria à mesa. - E então, você virá a mim, como um cachorrinho, e implorará, para que meu plano de deixar este lugar se concretize e nunca mais eu tenha que olhar para a sua cara nojenta, que só me faz lembrar de nosso pai. E então você poderá manchar a sua honra e a de sua família, transando com quantas putas você bem entender em quantas porras de igreja você bem entender.

Thevir apenas tremeu, apertando a mão de Allena sobre seu braço, enquanto Herus se afastava, escancarava as portas da igreja, triunfante, e sumia na escuridão lá fora. Os olhos dos jovens amantes se encontraram. Desespero e angústia. A noite acabou ali.


Na manhã seguinte, Herus decidira ter seu desjejum nos jardins da herdade de seu falecido pai. O antigo senhor havia morrido com a peste, que não poupara ninguém. 

Comia um grande pedaço de “A’mhor de Nozes”, uma torta de origem albaraza. Seu doce favorito. Entre uma colherada e outra, viu Thevir se aproximando por um dos caminhos de pedra.

Herus era mais velho, com seus trinta e poucos invernos, filho primogênito do antigo lorde, mas sem qualquer direito, por ser bastardo, filho de uma camponesa. Ela morrera jovem e ele foi viver no castelo: escudeiro de qualquer um. Como adulto, era apenas mais um soldado, apenas mais um cortesão, apenas mais um peso para o irmão que herdara as posses do pai. Ele não tinha responsabilidades, nem liberdades, por isso abusava do fato de viver no castelo.

Já Thevir era um molecote, mal chegado à idade adulta, cerca de 16 primaveras, treinado para ser soldado, esperto e falastrão, quinto filho legítimo do falecido lorde, mas segundo varão, conquistava aos poucos seu lugar no mundo e a confiança do irmão mais velho - coisa que era difícil, visto que sempre estava envolvido em alguma confusão. Nenhuma como “transando na biblioteca da igreja, depois de ter roubado as chaves”.

Caminhava vacilante, sem prestar atenção no sol lindo que fazia, nas calêndulas desabrochadas, ou em qualquer outra coisa que não fosse o meio-irmão, sentado sob um toldo esvoaçante de seda cara, com um ar ensoberbado e insuportável. Eles nunca se deram muito bem, e Thevir desde pequeno aprendera a evitar Herus.

- Está um lindo dia irmão. Por que a carranca?

- Diga o que quer Herus. Vamos acabar logo com isso - respondeu o mais jovem, com todo o orgulho que conseguiu reunir. Fez um sinal para os servos deixarem-nos a sós.

- Não quer um pedaço de torta, um suco de limão? - Perguntou, já se inclinando com uma jarra na mão.

- Eu quero acabar logo com isso.

- Me alegro que esteja tão ansioso. Talvez até o fim da semana já tenhamos conseguido nos livrar um do outro, o que acha?

- Você sempre com essa conversa de que vai sair… E se sair, vai fazer o quê?

- Ah… que terno. Isto é um pedido para que eu fique, irmãozinho?

- Meio-irmão. - Havia uma mistura de nojo e ódio.

Herus revirou a língua dentro da boca, e respirou fundo. Talvez tenha deixado transparecer não mais que um lampejo do ódio nutrido por toda aquela vida e aquelas pessoas, que o mantinham à margem. Thevir com certeza não percebeu e insistiu:

- O que vai ser afinal? Dançar nu com uma cabra na praça? Cavalgar pelado no Inverno? Te pagar uma passagem para Orull? Uma noite em algum prostíbulo em Louvença? - Seu sangue subia pelo pescoço.

Herus abriu um sorriso amarelo, desfrutando cada instante. Levou calmamente mais um pedaço de torta à boca e saboreou-a, deixando sua doçura misturar-se à amarga angústia de Thevir. Eles se encaravam. Engoliu e falou em seguida:

- Eu quero - enumerou nos dedos - duzentos Soris. Duzentas moedas douradas reluzentes, com um sol de um lado e a carinha do nosso rei de outro.

- Deixe de absurdos e diga logo o que quer que eu faça… de que te vale implicar comigo por conta disso?

Herus recostou-se na cadeira e cruzou os dedos satisfeito, encarando Thevir, esperando ele digerir a verdade.

- Não é possível - protestou indignado - Ninguém é santo aqui. Nem meu pai pôde se conter… E você é a prova viva disso... Realmente acha que vão fazer todo este escândalo? Eu a amo! Casava-me com ela, se não fosse meu irmão.

Herus riu da ingenuidade do garoto. De fato, todos sabem que transar não é o problema, como se evitaria? No entanto…

- Você foi longe demais Thevir levando uma qualquer para a igreja, garoto… não tinha nenhum celeiro para vocês se meterem? Estava em busca de emoção? Queria trepar à vista do Eterno? Onde é que você enfiou a sua cabeça, seu imbecil? Para qualquer um daqueles monges linha dura, é fogueira para você e para a sua garota 

Thevir começou a dimensionar a tolice. Herus aproveitou a deixa e imitou uma fala inflamada:

- Pecadores infames! Adoradores do Impuro! Fornicadores detestáveis! Vergonha para a humanidade! - Ele falava no falsete, apontando o dedo para a cara do meio-irmão, se divertindo com isso.

Thevir pôde quase sentir as chamas da fogueira ao seu redor. Há uns anos atrás, quando seu pai ainda estava vivo, ele tinha visto uma mulher, acusada de bruxaria, queimando na fogueira. Lembrou-se do monge itinerante que a condenara, falando num tom muito semelhante. Talvez Herus também se lembrasse dele.

- Você não vai me assustar com essas bobagens. - Disse. Tentando parecer firme. Como Herus não falou nada, adicionou - Onde eu vou conseguir todo esse dinheiro?

- Ora garoto… Você é esperto… E rico. Tenho certeza que pensará em alguma coisa.

Thevir ainda ficou sentado alguns instantes tentando digerir se aquilo tudo era verdade. E os olhos astutos de Herus deixavam claro que ele não estava brincando. Thevir sentiu um medo que nunca havia sentido antes. Naquele dia ele se deu conta de que, às vezes, o inimigo dividia o teto com você e se misturava com a multidão, sem deixar rastros, para um dia aparecer, dar o bote e sugar toda a sua felicidade. Mas ele tinha um plano. Um anel de ouro aqui, um pagamento falso ali… Inclusive, o recolhimento de impostos seria esta semana, e ele poderia “supervisioná-lo”... De fato, para as terras deles esta quantia não era tão volumosa, embora também não fosse nada irrisória. Ela equivalia mais ou menos ao salário de uns 6 anos de um mercenário. Ou a 3 Cavalos de guerra, ou a um quarto do que eles pagavam anualmente ao rei.

Ele estava tentando se enganar, dizendo para si mesmo que seria uma tarefa fácil, para se livrar logo daquela sensação horrível, quando na verdade o que ele sabia era que seria muito difícil fazer aquilo.

- Herus - ele raramente usava o nome do meio-irmão. - Por que está fazendo isso comigo? Eu não te fiz nada… - ele quase chorou. Sentiu seu peito se apertar.

- Ora Thevir. Jovem Thevir. - Herus simulou uma voz meiga. Tão bem que o irmão quase acreditou. - Eu odeio você. Eu odeio seu irmão. Eu odeio a sua falecida mãe que cantava para eu dormir. Odeio o meu pai por não ter me legitimado e dado a mim o que era meu por direito. Nem mesmo em seu leito de morte me reconheceu como filho legítimo. Eu faço as refeições depois de vocês, mas luto na frente de seus cavalos, segurando o estandarte - grande honra! Eu não sou ninguém aqui, e não sou ninguém por causa de vocês. Então eu vou pegar este dinheiro e me mandar. Mas não vou precisar me mandar como ladrão em fuga, por que você vai fazer o favor de roubar para mim. Ou melhor, você vai me pagar uma mísera parte do que sempre deveria ter sido meu, por direito!

Ele estava de pé quando terminou de falar. Furioso. As veias saltando. Thevir levantou-se também, para encará-lo. E virou-se sem dizer palavra, afastando-se de volta pelo corredor de calêndulas - uma excelente flor para inflamações.

- Ah! - Herus havia se lembrado de mais uma coisa. Thevir apenas parou, sem se virar. - Eu também quero a espada que foi de meu pai.

Isto era demais. Aquela espada estava em sua família por gerações. Ela ficou famosa na guerra contra os Albarazos, infiéis que haviam dominado a região no passado. E ninguém de sua família abriria mão dela, para alguém que não tivesse o mesmo sangue. Com o corpo tremendo de raiva Thevir se virou, olhou fundo nos olhos do irmão - naquele instante os dois estavam tão profundamente decididos, que foram cegados pelo ódio. - Eu vou conseguir o que você deseja. Me encontre no Monte das Pedras, à meia-noite, na lua nova. E nossa história terminará. Cada um seguirá seu caminho. É isso que você quer não é?

- Sim, irmãozinho. É isso que eu quero.


Os dias se passaram, a lua minguou. Os preparativos haviam sido feitos. 

Herus tinha mandado fazer uma carroça e preparou-a com dois cavalos e mantimentos para viagem.

Thevir tinha juntado ao longo das semanas pequenas jóias da casa e uma algibeira com moedas de ouro desviadas da coleta de impostos.

No almoço daquele dia os dois apenas se olharam, e sabiam que os caminhos trilhados até ali já não tinham mais volta. Thevir realmente amava com todo o seu jovem coração a jovem Allena e tinha tido pesadelos em todas as últimas noites onde ela ia sendo consumida por chamas azuis de fogo purificador, e ele gritava impotente, sem poder alcançá-la.

Herus sonhava com a vida que sempre lhe foi negada.

E, sob a luz das estrelas de uma noite sem luar, tudo se desvelou.


Herus havia, nos últimos anos, feito pequenos preparos para sua viagem, nada que chamasse a atenção. Algumas moedas aqui, uma jóia perdida ali... Ele se preparava para deixar aquele lugar, desde que a peste que levou seu pai, levou também sua esposa. Ele soube um dia o que era amor. Mas agora só lhe restava amargura. E, assim, falou ao irmão mais velho, no almoço daquele dia, que sabia que era Thevir quem estava sumindo com as coisas. Ele pretendia fugir com uma plebéia qualquer, disse ele ao lorde. Cínico e dissimulado, fez-se de bom moço em toda a história, mas mesmo assim o meio-irmão mais velho teve dificuldades em acreditar que seu jovem irmãozinho legítimo estaria lhe traindo. Herus, como prova final de que falava a verdade, disse para que mandasse um homem de confiança até o Monte das Pedras para ver se lá ele não encontraria ouro e uma carroça esperando para fugir. E adicionou ainda que nessa noite sem lua, o irmão menor deveria tentar levar também a espada de seu pai.


Thevir, estava decidido que mataria Herus naquela noite, usando a espada de seu pai. Ele era mais jovem, mas lutava melhor, e contaria com a ajuda de Allena para fazer uma emboscada no Monte das Pedras para seu meio-irmão.


Quando Allena chegou no Monte das Pedras com uma besta carrega, viu um soldado mexendo na carroça. E de uma só vez entendeu a armadilha na qual seu amado havia caído. Correu para o castelo para tentar avisá-lo, mas ao chegar lá, já era tarde. Thevir tinha sido encontrado pelo irmão mais velho removendo a espada de seu pai do pedestal em que a mantinham. Decepcionado, e com a mente envenenada por Herus o lorde não foi capaz de acreditar no irmão menor. Com o coração despedaçado, logo na manhã seguinte mandou-o para um monastério bem distante. Thevir tentou se explicar, mas nunca conseguiu.


Herus passou a ter a confiança do lorde, e com isso mais autonomia e liberdade. Passou a ser seu representante em terras distantes, viajou por muitas bandas, e enriqueceu. Quase não parava no castelo de seu falecido pai. Anos depois, o lorde veio a falecer num confronto e seu filho ainda era muito jovem, de modo que Herus foi nomeado seu regente. Voltou a ficar no castelo a maior parte do tempo. Mantinha sempre a espada do pai na cintura e educava o jovem lorde com rigidez e moralismo.  Ele já estava velho e cansado. E mesmo ainda amargurado, cinza e seco, tentava se convencer de que havia atingido a felicidade. Mas o Eterno o observava, e ele sabia disso. 


Numa noite de tempestade, uma das servas do castelo, que nunca tinha lhe chamado muito a atenção, entrou no seu quarto. Os trovões e a ventania lá fora ocultavam os sons de seus passos. Num dos clarões ela observou com ódio seu corpo adormecido. Noutro ela pegou a espada, e então a enfiou em sua barriga, em sua garganta… Enquanto ele se contorcia, sem nada enxergar, ela continuou estocando com toda a fúria de seu coração. Num último clarão, Herus já não era mais.


Aquela era Allena.


Ela fugiu naquela noite. Sua vingança havia finalmente se concretizado. Ela já não era mais a jovem alegre do início da história. Ela era uma mulher que carregava Rancor. E mesmo assim, ia direção ao monastério para onde havia sido mandado Thevir. Eles finalmente poderiam se reencontrar. Ela o tiraria de lá, e eles retornariam para o castelo, onde Thevir agora governaria, soberano.

Em sua fuga, com um cavalo roubado dos estábulos, sangue pingando dos braços e a tempestade açoitando a terra numa clara demonstração do descontentamento do Eterno com toda aquela história, a morte do lorde foi descoberta. Eu não havia dito, mas durante todo o tempo em que Allena satisfazia sua sede de vingança, uma prostituta que dormia com Herus naquela noite, gritava em desespero. Todo o castelo acordou.

E agora cães de caça perseguiam a fugitiva. Em algum momento, na escuridão, o cavalo quebrou a pata e foi deixado para trás, em agonia. A fuga era frenética e desvairada. Pés e patas enlameados, cruzando o antigo bosque, serra abaixo, aos tropeços. Uivos ecoando com os relâmpagos, e a respiração pesada de uma mulher que abraçava a morte.

Os cães a alcançaram quando ela chegou ao lago que hoje conhecemos como o Lago da Senhora. Ela entrou na água enregelante. Espada na mão. Nadou para o meio dele, fugindo do alcance dos cães. Os caçadores, que a tinham alcançado, não dispararam flecha alguma, mas não porque estava chovendo e elas seriam inúteis.

Mas porque a senhora Allena não sabia nadar.

Um clarão iluminou a lâmina da espada antes dela desaparecer para sempre sob o negrume das águas. Há quem diga que o ódio sobrevive a quem odeia. 

O que eu posso dizer é que ninguém nunca encontrou nem o corpo, nem a espada, que passou a ser conhecida, daquele dia em diante, como Rancor.


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